quarta-feira, 5 de setembro de 2012

XONDARO: A DILIGÊNCIA DO GUERREIRO




          Nisto o xondaro, o guerreiro deve empenhar toda a diligência: que em todo lugar, ação ou ocupação exterior, esteja interiormente livre e senhor de si mesmo, dominando todas as coisas, a nenhuma sujeito.
          Cumpre que o guerreiro seja livre, que chegue à condição de liberdade dos filhos e filhas de Ñanderu Papa Tenonde e de Ñandexy Ete. Esses não se deixam atrair e prender pelas coisas temporais, mas servem-se delas conforme o fim para que foram ordenadas por Ñamandu, que nada deixa sem ordem.
          Para cumprir a ordem de Ñamandu, em qualquer acontecimento, o guerreiro entra no Opy, a casa de reza, consulta o Tata Porã, o fogo sagrado, fuma o petym, toma o ka’ayu, ouve a divina resposta e é instruído a respeito de muitas coisas presentes e futuras. Dessa mesma maneira, o guerreiro  se refugia no mais recôndito do seu coração, para, com mais instância, acender em si, o fogo do divino auxilio.
          Recordando que Ñamandu é: o escudo, a seta, a liberdade. E, que sem essa arma, o guerreiro é, apenas, pó.

domingo, 26 de agosto de 2012

RETÃ PORÃ: O ESPAÇO SAGRADO


       Awaju Poty omombeu:
          Todo tempo e todo espaço é sagrado quando consagramos nossas vidas. Porém, sempre há um lugar ou um tempo que é especialmente sagrado para cada um de nós. O meu espaço/tempo sagrado, por excelência, é o Tekowa, a minha aldeia; ou, qualquer outro Tekowa Ñandewa Guarani, ou seja, o território onde vivemos a nossa maneira de ser em plenitude. E, o coração do meu espaço sagrado é o Tata Portã do Opy, a casa de reza/meditação/dança; mas também o Ma’ety, lugar onde esta o desenho de plantio do Awaxy, o milho sagrado e as plantas sagradas.
          Porém nos últimos tempos tenho viajado muito, dando recitais de canto e harpa Guarani. E aprendi a criar o meu espaço sagrado em qualquer circunstância. Muitas vezes faço isso em um quarto de hotel.
          Em um quarto de hotel não posso acender um Tata Porã, fogo sagrado, então acendo um Tataendy, uma vela. Não posso acender o Petyngua, o cachimbo, então acendo um incenso. Sento em meu Apyka, meu Apyka é uma pele de cordeiro que me foi ofertada por meus irum, irmãos do Uruguai. Quando estou com a harpa, toco e canto; toco a harpa e canto baixinho para não incomodar os outros hóspedes; quando não estou com a harpa, toco o berimbau, monocórdio.
          Quando canto um Mborai, evoco o sagrado, então o tempo e o espaço se tornam para mim sagrado; mesmo no caso de ser um quarto de hotel ou um teatro. No caso do teatro, para muitas das pessoas que me assistem aquele é o momento de um recital, para mim, um Ara Porã, um momento sagrado.
          Há ocasiões em que não posso fazer nenhum ritual, nenhuma cerimônia e, nem cantar ou tocar, como por exemplo, dentro de um avião; nesse caso apenas respiro silenciosamente o nome evocativo de um Mboruwyxawete, espírito ou anjo, força telúrica, numinosa que me coloca em uma dimensão tempo/espacial sagrada.
          Assim, diria que espaço sagrado e, tempo sagrado é algo que desfruto com prazer infindo e que é tudo quanto necessito. Então, tudo e, qualquer lugar se torna sagrado; em última instância, quase tudo se torna um deleite continuo e crescente todo o tempo e em qualquer lugar. Isto foi o que aprendi nas circunstâncias em que Ñamandu, a “natureza de todos os mundos”, me colocou.

KORA: A LEI


          Em aty realizado no Tekowa Pu’Aka, na última lua cheia de verão do ano de 51.998, a mboejari Yxapy Rendy colocou para o Awaju a seguinte questão e fez o pedido de que ele fizesse uma exposição dos Kora. A questão:
          Por vezes penso que você acredita em vida após a morte e até mesmo em encarnação, e por outras, como no caso da resposta que você deu para o Angaturã sobre o “Ñemano”, penso que você não acredita na perenidade do espírito, ou, que não tem nenhuma afirmativa sobre o tema, afinal, como você pensa isso?
          A resposta do Awaju:
          - Xerayxy iporã, querida mãe de meus filhos, tudo sei e, nada sei, tudo posso e, nada posso, como na historia da “Arai”, são faces de uma mesma coisa. Sempre que estamos seguros de algo, é momento de autocrítica, porque normalmente estamos seguros tendo teto de vidro em véspera de amandau, de chuva de granizo.
          Esta nossa vida é única, e isso basta. Vivamos conscientes de que cada momento perdido esta perdido para sempre. Nunca mais haverá eu e você e, este momento e, este lugar.
          Agora, antes de abordar a segunda questão que você me propõe, que é a explanação sobre o decálogo, a Kora; queria voltar a um ponto que abordei na reposta ao Angaturã, no “Ñemano”. Porque muitos pensam que a consideração pelo Kora diz respeito a uma compensação futura, em outras vidas, e isso não se dá assim. A consideração ao Kora diz respeito a uma satisfação que provem do âmago de todo nosso ser e, tem relação com a índole de cada um; e isso sim. É determinante com relação a uma vida feliz ou infeliz, aqui e agora.
          No cumprimento do Kora, honro meus ancestrais, rejubilo minha gratidão pelo que tenho, principalmente pelo corpo que herdei; e, pelo que sou como ente humano, pela formação de meu espírito; que são: corpo e espírito, um só. E me congratulo com as futuras gerações, lhes deixando como herança uma vida dedicada ao que posso ser de melhor, para lhes deixar no que esta ao meu alcance, um mundo melhor. Então, cumprir a Kora, para mim, é liberdade e alegria, em um mundo que neste momento não esta respeitando os limites e pondo em risco a vida na “madre tierra”. Num mundo em que o desrespeito à vida tornou-se banalidade cotidiana, e de tão vulgar se tornou imperceptível para muitos que se dizem espiritualizados, ou humanizados. 
          Separar a vida espiritual da vida material, ou falar de iniciados e não iniciados, de eleitos e proscritos, é arbitrariedade e não encontra respaldo na Kora, nas leis da natureza de todos os mundos. Essa divisão normalmente gera grandes desvios do que é ete (verdadeiro e natural). Alguns que se julgam iniciados não passam de patetas, enquanto outros que nunca pretenderam serem espiritualistas ou iniciados como vulgarmente se diz, são levados pela escola da existência a grande realização e, maturidade de ser. Como canta o harpista, muitas das atitudes humanas são apenas “vaidades de vaidades sob o sol”(cf. Eclesiastes 2:11). E, os que mais apontam defeitos no semelhante, e dão conselhos que não são pedidos e, se julgam instrutores dos demais, os “sabe tudo”; são pessoas que mascaram suas carências e deficiências, buscando dessa maneira uma forma de serem notados, mesmo que sendo incômodos e indesejados. Bom, mas vamos ao pedido da exposição do Kora:
          Moxe reuniu nosso povo nas faldas de uma grande montanha, e ali, em torno do Tata Porã, o fogo sagrado, iniciou o aty, a sagrada cerimônia. Era o final da tarde, fim do dia. Tupã brilhava vermelho sobre o vale que descortinava no horizonte. Então Ñamandu se manifestou no fogo no cume da montanha, e chamou o Mboruwyxawete Moxe para junto de si. Nesse aty, face a face falou Emanu com nosso povo, no monte, do meio do fogo. O povo manteve-se nas faldas da montanha, apenas o Mboruwyxawete Moxe subiu ao cume, e Emanu gravou em duas tabuas de pedra a Kora que deu a Moxe (1), para o povo decorar e, não perder da memória. Tudo isso aconteceu em Orewe(2), a montanha onde da chama Ñamandu falou com nosso povo.   
          Observando as duas tabuas, constatamos que na primeira tabua estão quatro preceitos, que tratam de regular a nossa relação com Ñamandu. E, que na segunda tabua, estão os outros seis preceitos, que estabelecem parâmetros para a nossa relação com o próximo. Vou me deter em cada um deles, porém, darei inicio a esta exposição, começando pela segunda tabua.
          É muito oportuno que o primeiro dos preceitos da segunda tabua tenha a ver com a relação entre pais e filhos - 5º mandamento: “Honra teu pai e tua mãe”(3).
          Comentário:
          O povo Ñandewa é um povo de Mboruwyxawete (reis) e de Paje (sacerdotes), e nossos pais são os reis e rainhas, os sacerdotes e as sacerdotisas, de nossas famílias. Devemos cuidar de ser assim, para que tenhamos saúde e longevidade nesta vida e, harmonia e respeito em nossas Oka (casas).  
          O segundo dos preceitos da segunda tabua trata do respeito à vida: 6- “Não matarás”. (20:13)
          Comentário:
          Não matarás implica em não cometermos assassinato sobre nenhum ser vivente, em não cometermos deliberadamente nenhum crime contra a vida: seja contra o reino vegetal, animal ou mineral. Não podemos atentar contra a vida em nosso mundo, porque é contra a nossa vida que atentamos.
          O terceiro preceito da segunda tabua trata do mborayu: 7- “Não adulterarás”. (Êxodo 20:14).
          Comentário:
          O adultério, é em primeiro lugar uma falta a si mesmo; é falta a palavra empenhada, é um insulto a dignidade pessoal.
          O quarto preceito da segunda tabua, diz respeito ao que não nos pertence: 8- “Não furtarás”. (Êxodo 20:15).
          Comentário:
          Não furtarás através de lucro indevido, através de desvio do que não lhe pertence. Não furtarás a criação do próximo, seja ela material ou imaterial. Afinal, não tomarás nada do que não lhe pertença para que a sua alma não se furte; não furtaras o tempo do teu próximo sem lhe retribuir à altura.
          O quinto preceito da segunda tabua, diz respeito à falta com a verdade: 9- “Não
darás falso testemunho”. (20:16).
          Comentário:
          O que mente, mente para si. Então busque a verdade para que você não se torne um simulacro, um arremedo horrendo do que poderia ser belo. 
          Dizem que a mentira tem pernas curtas, porque cedo ou tarde é descoberta. E o primeiro que a descobre normalmente não é o mentiroso. O que dá falso testemunho colhe o fruto em sua própria vida e muitas vezes no fruto de sua vida.
           Temos que ser conseqüentes e ensinar com exemplo: se um pai mente, logo vera que seu filho o imitara.
          O sexto preceito da segunda tabua, o último mandamento de Ñamandu, diz respeito à inveja, ao mal olhado e, uma infinidade de males que assolam as relações humanas: 10- “Não cobiçarás os pertences de outrem”. (20:17).
          Comentário:
          A violação do último dos mandamentos é causa importante de uma quantidade enorme de males que afligem as relações humanas (Tiago 4:1, 2:1. Timóteo 6:10). É normal que possamos tomar pessoas como exemplo, é normal que desejemos progredir como fulano ou cicrano, esse não é o problema; o pecado esta em invejá-los.
          Agora veremos os preceitos da primeira tabua. O primeiro mandamento da Kora, diz respeito á nossa relação direta com Ñamandu: 1- “Não terás outros deuses diante de mim”. (20:3).
          Comentário:
          Todo desvio, tudo que nos separa da realidade, que se interpõe entre nós e Ñamandu, o centro irradiador de toda a vida, é Marã, fator de alienação, de dispersão de nosso foco vital. Os vícios, as manias, a perda de tempo em coisas nocivas ou frutos de mera vaidade ou desejo obsessivo, o engano e a maldade; afinal, qualquer coisa que se interponha entre nos e Ñanderu Papa Tenonde, nosso pai primeiro, último e verdadeiro, é um deus alheio a realidade, portanto, fonte de doença e insanidade.
          O segundo preceito da Kora, diz respeito à idolatria: 2- “Não farás para ti imagens para adorar”. (20:4-6).
          Comentário:
          A humanidade sempre teve uma tendência a fugir da realidade. E, hoje vive grande parte de sua vida, inserido, em um mundo de imagens virtuais. Seus objetos de desejo são automóveis, imóveis de luxo, atores, músicos, jogadores, ídolos cuja imagem é forjada pela mídia. Porém, o problema não esta em se ter um carro, uma casa confortável e bonita, nem em admirar bons atores, bons jogadores e, bons músicos; muito pelo contrário; o pecado esta em ter essas coisas como norteadoras da vida, como motivação para viver; esta em se deixar levar pelas imagens falsas que a mídia cria dessas pessoas e coisas.
          O terceiro preceito da Kora diz do tratar com vulgaridade o santo nome do doador da vida e da morte: 3- “Não tomarás o nome do ijara (senhor), ndee manu (teu Deus), em vão”.
          Comentário:
           Infinidades de pessoas desonram ao Ijara tomando repetidamente seu sagrado nome em conversações vulgares, usando linguagens indignas da espécie humana.
          Veremos agora um preceito que nos ajudará a evitar a desconexão com Ñamandu, com nossa família e com nossa tribo. Esse preceito nos pede que, sejam feitas todas as nossas tarefas, dentro dos seis primeiros dias da lua; e que o sétimo dediquemos para regozijarmos com Ñamandu, em família, com a tribo. Toda a família, todas as pessoas deveriam cooperar na preparação para começar bem o sétimo dia da lua, desde o por do sol do sexto dia.
          O quarto preceito da Kora, diz, para dedicar um dia de cada fase da lua, para rezar no Opy (casa de convergência da aldeia) e, para o descanso em Ñamandu: 4-“ Guarda o sétimo dia para o santificar”.
          Comentário:
          Hoje, o calendário civil é totalmente desvinculado da natureza, tornou-se absolutamente artificial, talvez refletindo a própria vida artificiosa do cidadão contemporâneo; não tem em consideração o ciclo lunar nem os solstícios e equinócios. É triste observarmos, por exemplo: o fato de no hemisfério sul, ser obedecido o calendário do hemisfério norte. O sul inicia o ano no período de contração da natureza, o transcurso se dá de maneira invertida; como um barqueiro que sobe a maré na vazante. Então tudo se torna mais difícil, na lida diária de cada cidadão. A maioria das pessoas não tem a mínima consciência desse fato.
          Há mesmo pessoas de boa fé que, desconhecendo as adulterações feitas por homens trevosos, ou seja, ignorantes da harmonia da natureza, guardam o sétimo dia civil, não se dando conta que essa é apenas uma formalidade. Ñamandu não pede formalidades, pede para que atinemos com a realidade.
          Todos deveriam cooperar na preparação para começar bem o sétimo dia, desde o por do sol do sexto dia. A fim de não estar preocupados pela atenção de coisas secundárias, devemos ter a casa, a roupa, os alimentos, a madeira para o Tata Porã, a erva para o Ka’ayu, o petyn para o fumo, os incensos, etc., desde o sexto dia, que é o dia de preparação (Lucas 23:54). O sétimo dia devemos passar em obras santas. Porém não esquecer que o sétimo dia é o sétimo dia da lua.
          Ver o grande mandamento em: Mateus 22:34-40.
          NOTAS: 
1.Ver Deuteronômio 9:10.
2.Orewe: Montanha onde a Kora foi dada a Moxe (Malaquias 4:4). O monte onde Ñamandu apareceu a Moxe em uma sarça de fogo (Êxodo 3.1). Onde Moxe feriu a rocha e dela emanou água (Êxodo 17:6-7). Monte onde nosso povo permaneceu por largo tempo (Deuteronômio 1:6). Onde Ñamandu admoestou o povo (Deuteronômio 4:10). Em Orewe o grande fogo (Deuteronômio 18:16). Montanha onde Ñamandu falava com os profetas (1Reis 19:8-9). Forma Juruá de escrita: Horebe.
3.Ver Êxodo 20:12.  

quarta-feira, 27 de junho de 2012

AGUYJE: A MATURAÇÃO


                                                                 
Em aty realizado no Tekowa Pu’aka, yxa de Kwaray, ano de 51998, a Ywoty fez a seguinte pergunta para o Awaju:
Xe’ru, meu pai, na resposta que foi dada para o Tupanju, sobre Wy’a, a felicidade, foi colocado que o propósito do Ñande Reko é o Aguyje, certo?
A resposta do Awaju foi:
Xe’rajy, minha filha, o propósito do Ñande Reko é caminharmos em felicidade rumo ao aguyje.
Para o Tupanju coloquei que a felicidade depende da fé nos Kora, ou seja, da fé no que é licito. Agora, você me pergunta sobre a questão que é chave para o Ñande Reko. Ou seja, o Aguyje.
Antes de te falar sobre o Aguyje gostaria de te dizer que ressaltei a necessidade de cumprirmos com o que é lícito, porque não podem ser felizes pessoas a quem lhe remoem as lembranças de más ações. Porque não cabe felicidade em quem acolhe pensamentos de vingança, inveja, ciúmes e ódio. Porque não cabe felicidade em quem não tem o coração puro e a consciência límpida. Nenhum estímulo, nem riqueza ou honrarias, podem lhe dar a verdadeira felicidade; darão apenas um simulacro da felicidade, sucedido de um grande vazio. A única condição para a cura do mal é o reparo das más atitudes e o pedido de perdão e misericórdia; nisto consiste a cura, pois a doença é o mal não sanado. Por isso Emanu após curar dizia: “Os teus pecados te são perdoados”(1).  A doença é um sintoma de transgressão ao Kora.         
O aguyje é a maturação do ser, e depende da santificação, que alguns chamam de estado de graça, outros de iluminação. Os orientais chamam de Nirvana, os japoneses de Satori, e assim por diante. Mas nenhuma é a mesma coisa. Assim posso te dizer que a maturação do ser depende da santificação, e que a realização da santificação é o aguyje.
O ponto fundamental desta questão é mesmo a santificação, e daí, nos resta saber, o que é e que fazer para se obter a santificação. Digo que o mapa já nos foi dado por Moxe (2). E que a Kora (3), o decálogo, esta na tradição de todos os povos, e traduzido para todas as línguas; assim, é só realizá-lo.
Antes de iniciarmos nossas recomendações para a obtenção da santificação, vamos identificar como é um santo. Isso porque muitos hipócritas e moralistas tentam passar por santo, colocando inclusive jugo sobre os demais, aparte de manifestarem um indevido sentimento de superioridade. Porém suas atitudes apenas enganam aos tolos, pois os frutos de suas ações são ocres e cheios de espinhos, deixando clara a qualidade de sua matriz. Acredito mesmo que essa atitude é advinda de uma grande falta de senso crítico e de um desconhecimento absurdo de si mesmo.
Por outro lado, uma pessoa santa é como água pura, livre de toda contaminação e capaz de purificar todas as coisas. Assim como a água pura é transparente, a pessoa santa manifesta transparentemente a Personalidade de Emanu dentro de seu coração. O amor a Emanu é o reservatório de toda a felicidade. A água produz uma vibração muito agradável à medida que flui e cai em cascatas. De modo semelhante, a vibração sonora de um arandu (devoto) é muito atraente e bela.
Agora vamos ao caminho para o aguyje:
Os Kora revelam o caráter de Ñamandu. Ñamandu é amor e sua lei é amor. “O cumprimento da lei é o amor”(4). A obra de santificação consiste em reconciliar a humanidade com Ñamandu, pondo-os em harmonia com os princípios da sua lei.
Emanu orou por seus dicipulos: “Santifica-os em tua verdade; tua palavra é verdade” (5). E lhes disse: “Quando venha o espírito de verdade, ele os guiará a toda verdade” (6). E o harpista cantou: “Tua lei é a verdade” (7).
Então, amor sem cumprimento dos Kora, pode ser qualquer outra coisa, menos amor. E, santificação: é amor puro. Assim, o caminho para o aguyje é a santificação que é obtida com o amor puro. O sentimento de prazer em cumprir a Kora, é o amadurecimento do amor (8), ou seja, o Aguyje.
Em nossos aty (cerimônias) temos uma forma (desenho), ao qual respeitamos, temos nossa Xy’na’oka, que é o Opy, nossa Oka mãe, a casa sagrada onde fazemos os aty, temos o Kora, o Aywu Porã, o Awaxy, o Tata Porã, o Jeroky, o Petyn, o Ka’ayu, os Poã e ypy, nossos mitos. E tudo tem um sentido para nós, e um sentido que pode ser diferenciado para cada um de nós.
      Outros povos têm outra maneira de ser, e nos devemos respeitá-los, porque somos uma grande família, a família humana. Ñanderu Papa Tenonde certamente prefere o diálogo, a reconciliação e a cooperação à discórdia entre seus filhos e filhas amados.
Por outro lado, as religiões, por assim dizer, são muito semelhantes, e quase sempre têm os mesmos objetivos, apresentando as mesmas proposições de maneira e em linguagens diferentes. Portanto, as religiões devem ter o papel de reconciliar e não de dividir. Uma religião que pregue a segregação e que se julgue a única certa ou a melhor, não esta cumprindo com seu papel de propagar o bem, a tolerância e o amor.
De Ñamandu tudo veio. Nós e tudo que existe somos uma emanação (criação) de Emanu. Emanu tudo fez com grande beleza, ele é um grande artista; sua fala é poesia. E, seu espírito é a verdade.
A linguagem de Ñamandu é mito-poética, e sua emanação é pura musica, por isso não é possível conhecê-lo, compreendê-lo ou falar dele de maneira discursiva. Uma música se sente, vibramos com ela, mas não se explica; quando muito podemos indicá-la.
Em todos os povos, em todas as línguas o Kora’tam (coração) se expressa, emana como cor, som, perfume e tem o sabor de tudo que é bom e faz bem; porque a graça é dom de Ñamandu, que é derramada sobre todos os santos. O aroma de Ñamandu desabrocha em todos os jardins e é espalhado pelos quatro ventos.
Tolo é o homem ou a mulher que pensa que uma determinada religião ou seita possui a verdade única, como se a posse da graça de Ñamandu fosse sua posse, em detrimento dos demais filhos de Ñamandu Papa Tenonde. Como se seus guias cegos estivessem acima de  Ñamandu e pudessem demandar sobre seus desígnios. Emanu emana seu espírito santo aonde lhe apraz. Isso os santos de todos os povos, de todas as línguas, de todas as religiões sabem, porque têm Koratam (9).

          NOTAS
1-      Ver: Lucas 5:20.
2-       Moxe: Moises. Por tradição, foi quem nos ensinou a centrarmos em torno do Tata Porã (fogo sagrado), que se manifestou pela primeira vez em forma de sarças de fogo.
3-       Kora: O decálogo recebido por Moxe.
4-      Ver: Romanos 13:10.
5-      Ver: João 17:17.
6-      Ver: João 16:13.
7-      Ver: Salmo 119:142.
8-      Amor: No sentido do Mborayu; Ver “Mborayu” (tese de doutorado).
9-      Koratam: Coração. Literalmente, firmeza na lei; o cerne da madeira, madeira de lei.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

ÑEMANO: A MORTE



Em aty realizado no Tekowa Pu’aka, na última lua crescente de verão do ano
de 51.998, Tupã Angaturã fez a seguinte pergunta para o Awaju: Xe’ru, meu pai, me
disseram que um dia os mortos vão ressuscitar dos túmulos, quando Emanu, que
eles chamam de Jesus, voltar. Isso é verdade?
Awaju Poty respondeu: Xe Ray,
meu filho, não vamos entrar no mérito das crenças alheias, pois assim acreditam os
católicos e os evangélicos. Mas pra você o que lhe parece, acha que tem vida depois da
morte?

Angaturã respondeu, simplesmente: - Não sei.

Awaju então lhe disse: - Esta é a resposta que todos deveriam dar.
Agradeço muito pela tua resposta Tupã Angaturã e, fico muito feliz por ser teu pai e
estar junto a você nesta vida. Você possui a nobreza de Tupã. Para dar essa resposta é
necessário ter muita coragem. O que acontece é que as pessoas são muito apegadas à
vida e, não se apercebem da maravilha que é a morte, o momento do descanso do
guerreiro, o fim da história. E, criam então uma enormidade de justificativas para
enganarem-se a si próprio, malabarismo tão grande, quão grande seja o medo da
morte. Mas a morte é inexorável. Essas tentativas de fuga tornaram-se crenças, e
justificam uma porção de coisas. Muitas delas extremamente maléficas. Uns acham
que vêem de encarnações pretéritas, e se julgam superiores aos outros. Outros acham
que por pertencerem a determinadas seitas ou religiões estão salvos da morte, que
são escolhidos de Deus e que os demais são escória, não vendo que escória é quem
pensa assim, por seu próprio modo limitado de pensar. Enfim há uma gama enorme de
suposições que em última instância apenas servem para justificar a mediocridade dos
medíocres e fazê-los se sentirem superiores aos outros, não enxergando quase nada
além de seus próprios narizes e não ouvindo nada do que não querem saber,
refugiando-se na sua estreiteza de juízo. Ainda há os que se julgam fazendo um
caminho espiritual, seccionando o mundo em um universo sagrado e outro profano,
como se isso existisse de fato. Também tem os que se propõem a mortificações e a
abstinências, como o celibato, matando em si toda a manifestação da vida; esses são
os piores porque são os castradores. Enfim, há toda uma gama de covardes e de
medrosos que não conseguem e não querem ver essa verdade última, que você
tranquilamente expôs, na sua sabedoria e tranqüilidade de criança. Para este dia
bastam angústias deste dia, o dia de amanhã cuidará de si mesmo (cf. Mt 6:34). O
mais: “não sei”.

“Não sei” é Ñemi Guaxu, o Grande mistério, a parte perene de Ñamandu, a
Natureza de Todos os Mundos. Aprofundar no “não sei” é mergulhar no infinito mar
de Ñemi Guaxu em nós, nossa parte perene; entre as margens de ñemano, a morte.
O Guata Porã, ou seja, o caminho sagrado do xondaro, guerreiro, se inicia quando o
Kwimba’e, toma a decisão de atacar corajosamente os próprios medos, você ainda

é um menininho, Awa Kyrim, meu querido Kurumim, onde já brotam os rebentos do
futuro Xondaro.

terça-feira, 15 de maio de 2012

WY’A: A FELICIDADE


Cerro Uritorco - Capilla del Monte 

         Tupanju, em aty realizado em ara aguyje, tangua de Gua’a, ano 51.998, no Tekowa Pu’aka, fez uma pergunta muito importante para todo o nosso povo, dirigida ao Awaju; porque na resposta que o Awaju lhe deu, pela primeira vez foi abordada a origem do povo Ñandewa, ou seja, de nosso povo, bem como salientado o propósito do Ñande Reko como um caminho de felicidade em direção ao aguyje. Esta foi a pergunta do Tupanju:
          - Xe’ru, meu pai, eu queria saber um pouco mais sobre os meus ancestrais. Como eles eram?
          Sei que os pais do Tata eram caiçaras, e que a mãe do avô Nelson era tingui; e sei também que os pais da Mama eram italianos assim como o pai do avô Nelson e os pais da avó Geni; e que nós somos Ñandewa e praticamos o Ñande Reko. Você poderia me dizer um pouco mais sobre esse tema?
          Outra coisa que me deixa confuso, também, é o fato do Cabeza de Vaca ter achado que o nosso povo era Wiking; e o Orellana, que era Grego, e já li também que alguns acham que a origem de nosso povo é Fenícia. Que confusão é essa?
          A resposta do Awaju foi:
          Xe’ray, meu filho, você fez uma pergunta abrangente que me possibilitara relembrar e esclarecer coisas importantes para o nosso povo.
          Vou começar pela última pergunta, sobre as Ykamiabas. Quando nossas Xondaria kwere (guerreiras) atacaram o Orellana (1), das margens do rio Maranhom, ele achou que estava sendo dizimado por um grupo de guerreiras lendárias, chamadas na mitologia grega de Amazonas, porque não tinha outra referência para se apoiar no entendimento do que estava lhe acontecendo. E a partir daí o rio Maranhon passou a ser chamado de rio Amazonas.
          Quanto ao Cabeza de Vaca (2), aconteceu algo semelhante, a única referência que ele tinha de um povo semelhante ao nosso eram os Wikingos, como ele chamou, tribo navegante do mar do norte.
          A hipótese da origem Fenícia se dá, devido às inscrições deixadas por navegantes dessa nação antiga, no litoral brasileiro; na verdade os fenícios mantiveram comércio com o nosso povo. E ainda há outras hipóteses, baseadas nos textos hindus. E todas elas são verdadeiras, menos no que concerne à origem do nosso povo. Há outras suposições mais, mas não é o caso agora de comentá-las.
          Voltando ao inicio da tua pergunta. Os tingui, em guarani Xi’inguy, denominação dada por vestirem-se e adornarem-se de branco; e os Caiçaras, em guarani Ka’aijara, senhores das matas, são povos de origem cario, em guarani Kario. Os Kario do litoral brasileiro, após a invasão européia, no século XVI, miscigenaram com portugueses e passaram a ser designados como caiçaras. Os Xi’inguy, Kario do planalto, acabaram mais tarde se miscigenando com colonos italianos e alemães. Os Kario da Amazônia se miscigenaram com sertanejos vindos principalmente do Maranhão e do Ceará. Devido aos casamentos interetnicos a nação Kario (3) quase se extinguiu. Hoje ela renasce em nós.
          Então, resumidamente, o povo Kario veio para pindorama (Brasil e países limítrofes), a milhares de anos. São originários de Rani, região de Ka’ana’an (Canaã); por isso a denominação Guarani, ou seja, provenientes de Rani; pois gua é radical de desinência de lugar ou de contenção de algo em um lugar. Rani, que deve ser pronunciado com “r” brando, significa néctar, e também foi nome de uma princesa. Muitos confundem a palavra Guarani com a palavra Guarini. Rini, tini, significa audaz; daí Guarini significar guerreiro, e não ser uma corruptela da palavra Guarani. Ainda outras aproximações podem ser feitas, como com a palavra Gua’rendy, que significa receptáculo de luz, ou vindos da luz. Ou ainda Kwaray’i, ou seja, pequenos sois, ou filhos do sol nascente. Todas estas aproximações são interessantes, e não são coincidências, mas não dizem respeito à origem etimológica da palavra Guarani.
          Ñandewa, como você sabe, significa “dos nossos” e, refere-se aos guarani que aderiram às reformas, ou melhor, às boas novas, trazidas por Tomé, que em guarani dizemos Xume (4).
          Ñande Reko, como você, também, sabe, significa “nossa maneira de ser” e, refere-se ao nosso caminho de felicidade rumo ao aguyje. Felicidade, Felix em latim, ‘é ter fé, no que é licito’, ou seja, é ter os Kora (5) como mapa do caminho.
          Porém, digo para você que, todas essas informações são importantes apenas para conhecermos aspectos de nossa cultura, do porque somos assim. Não devem de maneira alguma servir como fonte de descriminação. Nunca devemos esquecer que nosso pai é o Sol, que nossa Mãe é a Terra, que nossa Avó é a Lua, e que todos os seres existentes são irmãos, filhos da mesma nobreza. Aonde houver enfermidade, devemos levar sanação. A enfermidade pode manifestar-se de muitas maneiras, mas a pior delas manifesta-se como baixa estima.
          Nestes meus 55 anos assisti a enfermidade da segregação, entre muitas outras, manifestar-se com ferocidade em nosso mundo. Por isso quando me perguntam se sou Guarani, respondo: Sou Guarani Kario, sou Caiçara, caboclo, caipira, ribeirinho, sertanejo, gaucho, criollo, sou o índio trazido da África e, o índio expatriado da Europa e que encontrou abrigo nesta terra de Pindorama. Mas também quero dizer quem eu não sou: Não sou o que tem vergonha de seu povo, o que explora e segrega seu irmão, o que semeou a discórdia e a enfermidade na terra. Disso tudo, posso falar com segurança, porque assisti essas coisas acontecerem aqui.
          Minha família veio do litoral do Paraná para Curitiba, a motivação dessa transferência foi a melhora de vida e também sem dúvida o espírito de aventura. E esse mesmo espírito fez com que fossem para o interior do Paraná, para a região dos Campos Gerais de Guarapuava.
          Então, nasci em Curitiba e com dois anos de idade estava em Guarapuava, uma cidade bem pequena. Meu pai era encarregado da educação nessa região que ia de Guarapuava até quase a fronteira com o Paraguai e a Argentina. Nesse tempo, ha mais de cinqüenta anos atrás, as cidades que hoje conhecemos não passavam de pequenos povoados que se formavam nas margens das picadas que iam sendo construídas. Essa terra toda que estava sendo ocupada pertenciam aos Guarani Missioneiros que foram dizimados pelos Bandeirantes. As pessoas que chegavam nesse primeiro momento  eram deserdados de outras terras e aventureiros. No principio as coisas aconteciam de maneira harmoniosa e tranqüila, iam se instalando os caboclos, os gaúchos e, os colonos; o convívio com os remanescentes Guarani era tranqüila, todos tinham um sentimento que os irmanava que era o da esperança na construção de uma vida digna. Nesses tempos eu tinha ainda menos de cinco anos e viajava com meu pai por todo esse interior. Posso dizer que os caminhos eram constituídos de picadas sinuosas que desviavam os acidentes naturais e também as grandes árvores. As florestas de araucária eram impressionantes, havia araucárias e imbuias que precisavam de dez homens para abraçá-las. Os rios eram imponentes, límpidos e repletos de espécies de peixes, rios maravilhosos como o Ivai, o Piquiri e o Iguaçú. Assistia meu pai instalar escolas e designar professores e acompanhar o desenvolver das coisas, e por sorte sempre me levava junto. Também assisti sua consideração por nossos irmãos Guarani Mbya, construindo escola e designando professores para a aldeia. Havia toda uma admiração pela luta dos Guarani que haviam enfrentado de maneira tão desigual a tirania das metrópoles. Os guarani eram admirados como homens valentes, havia um sentimento heróico e um respeito por sua luta inglória. 
                
          Espero ter respondido a contento as tuas perguntas, caso restem dúvidas, você pode voltar a me interrogar. Ñamandu Guata’gua Ñandekwerupe. Há’ewei.
          NOTAS:
Cabeza de Vaca: Álvar Núñez Cabeza de Vaca, navegante espanhol que esteve no litoral sul do Brasil em torno do ano de 1540.
 Orellana: Francisco de Orellana, navegante espanhol que esteve no rio Amazonas no ano de 1542.
Kario: O povo Kario recebeu muitas designações, tais como: Kariyo, Karijo, Ari, Kari, Karai, Karaiwa, Karaiba, Karaiwe, Karibe, Ara, Kara, Kar, Awa; e outros que se referiam a detalhes de sua maneira de ser ou de viver, como: Kito, Karioka, Kariona, Piratini, Xi’inguy (Xingones, Comexingones); entre outras. 
Xume: Tomé, Thomas, Dydimos Thomas. Era Irmão de Emanu (Jesus).
Kora: Leis de Ñamandu (nosso Manu). Refere-se às leis da Natureza e ao decálogo recebido por Moxe (Moisés).