segunda-feira, 3 de novembro de 2008

           

KAAIARI

A LENDA DA ERVA MATE

 

 

 

 

 

 

 

 

Neste texto apresento a tradução do original guarani de uma das versões da lenda da Erva Mate. Faço também uma possível leitura contextualizando esta lenda dentro do pensamento nativo guarani. É possível mesmo que a própria leitura da lenda remeta a outras referências que não cabem em si mesmas. Ou seja, a uma possibilidade de um pensamento nativo americano inserido na nossa modernidade brasileira. Um pensar que aponte para outras referências de cultura dentro da nossa própria cultura contemporânea brasileira, uma cultura multicultural.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Awaju Poty – outono de 2003

 

 

 

 

 

 

Kaaiari

 

A Lenda da Erva-Mate

 

 

Kwarayju Omombeu:

" Houve um tempo em que a nuvem da discórdia desceu sobre a grande nação guarani.

O eco das palavras de Xume ainda eram repetidos nos vales e nas montanhas, mas o sentido dos seus ensinamentos tinham caído no abismo do esquecimento. E os que ainda lembravam de alguma coisa, davam novo sentido e interpretavam de forma desastrosa os seus desígnios.

Os maus pensamentos arrombaram a porta do espírito e as bocas semeavam a maledicência.

Foi nesse meio que surgiu a divisão do povo e que usando a liderança de dois pajes muito respeitados por seus poderes, Anhã trouxe a guerra e a destruição entre os parentes.

Daí decorreu que duas facções se separaram, formando duas forças antagônicas, como se fossem duas nações estrangeiras, hostilizando-se mutuamente."

 

           

 

 

 

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

Awaju Omombeu:

Nas situações em que o homem, esmagado pelos homens, é radicalmente alterado, deixando de existir na sua identidade pessoal; no momento em que ele se torna o desconhecido e o estrangeiro, ou seja, fatalidade para si mesmo, seu último recurso é o de se saber esmagado, não pelos elementos da natureza, mas pelos homens, e de dar nome de homem a tudo que o ataca.

            O homem normal sabe que a sua consciência deve se abrir ao que mais violentamente o revolta: aquilo que mais violentamente nos revolta está em nós mesmos.

            Mas, despossuído  de tudo, o ser humano se torna enfim uma presença silenciosa que nenhum poder pode suprimir: o que essa presença traz, por si mesma e como afirmação última é o sentimento de pertencer à natureza.

            A interligação com a natureza é fundamental para que tenhamos um destino sobrevivente. Porém, é bom trazer sempre na lembrança que a maravilha da realidade humana está exatamente na sua inesgotabilidade de crises. Porque o esgotamento das crises significa esgotamento da esperança: sem crise ninguém pode fortalecer a sua própria sensibilidade dinamicamente.

            É preciso Ter ido ao fundo da dor humana, Ter descoberto suas estranhas capacidades, para poder saudar com o mesmo Dom ilimitado de si mesmo, aquilo que vale a pena viver.

            Kwarayju Omombeu:

           " A discordância entre as duas facções consistia em que, uma passou a usar o Kuruxu, a Cruz de Cristal Emplumada, mas rejeitava as quatro pedras dos ambas. A outra por seu lado rejeitou a Cruz de Cristal Emplumada, usando apenas o Ita'Kuruxu, as quatro pedras em torno do Tata Porã, o Fogo Sagrado: uma amarela na direção leste, uma vermelha na direção oeste, uma negra na direção sul e uma branca na direção norte. Anhã se ria de quase cair ao ver os símbolos sagrados de Xumé assim separados."

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

            Awaju Omombeu:

            O Kuruxu representa o momento em que o poder vertical de Ñanderu encontrou o poder Horizontal de Ñandexy gerando a dinâmica da vida. Que pode ser representado pelo fogo do Ita'Kuruxu ou pelo ponto de encontro entre o cristal vertical e o horizontal do Kuruxu. Na realidade ambos se reforçam.

            Os símbolos estão relacionados com ensinamentos e confirmações substanciosas, cujo entendimento nós só podemos aprofundar  através da utilização da função de cada tradição. Cada um dos símbolos de uma tradição tem grande valor funcional: seu aparecimento não aconteceu apenas através de uma escolha formal. Para chegar a estes símbolos, foi preciso muito tempo de dedicação e maturação. Os símbolos são uma sugestão mais condensada de uma confirmação mais profunda.

            Por outro lado entre o céu e a terra representa-se indefinidamente o drama da morte. A origem desse drama deve-se a um obscuro desejo de ultrapassar os limites da horizontalidade, ou seja, ao impulso geral de baixo para cima que orienta o crescimento dos seres vivos num movimento constante e monótono. Todavia, a transgressão do limite que é dado pela terra – plano horizontal por excelência – não passa de um evento episódico, e o amplo movimento dos vegetais milenares em direção ao céu, tem, como contrapartida inevitável, a curta duração da vida animal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

 

Kwarayju Omombeu:

"A luta do povo separado por Anhã se estendeu por tempos imemoriais, e muitas desgraças vieram. E muitas gerações passaram. E as vinganças não paravam de acontecer. E esse sofrimento, e essa agonia pareciam que nunca mais iriam Ter fim.

Eles já estavam cansados de tanta guerra, de tanta morte. Quando então os chefes de um e de outro povo resolveram fazer um aty, uma reunião de conselho, para combinar a paz.

Após cinco dias de aty chegaram em um acerto. Ficou decidido que iriam casar o mais valioso jovem de um dos povos com a mais valiosa jovem do outro povo e que daquele dia em diante iriam voltar a usar o Kuruxu Emplumado e o Ita'Kuruxu para selar a paz.

Um dos povos escolheu o seu mais valente xondaro (guerreiro), que era uma verdadeira emanação de Tupã, para ser ofertado para as núpcias.

O outro povo escolheu a sua mais bela Kunhãtai (moça) que era uma verdadeira emanação de Ñandexy, para ser ofertada para as núpcias.

O xondaro foi adestrado desde que nasceu para ser defensor de seu povo, ele foi escolhido pela nobreza de seu espírito, seu nome era Jukupe; e a kunhãtai foi ensinada pelo seu pai, o Arandu, na arte do espírito. Ela foi escolhida porque dentro dela havia sido cultivado o amor e a sabedoria, seu nome era Kaakupe.

O conselho também determinou que Kaakupe após as núpcias deveria acompanhar o seu esposo para viver com ele junto ao seu povo.

Kaakupe sentiu-se desamparada ao saber que teria que deixar seus pais e que nunca mais iria viver com eles. Estava consternada. Então sua mãe a pegou pela mão e a levou até um espelho de água. E lhe disse:

 

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

 

 " Quando a tristeza vier pousar em teu coração, olhe-se no espelho de

água. O espelho não é somente para você olhar o seu rosto, mas a

vibração do seu próprio ser. Se você sentir saudades de seu pai e de sua

mãe olhe-se no espelho para encontrá-los. Todos os problemas que aparecerem você poderá enfrentá-los olhando-se no espelho, pois através dele você poderá encontrar solução, resposta para o que a faz sofrer.

Após as núpcias , Kaakupe deixou seu povo para viver na aldeia do seu marido. Conforme havia sido determinado."

 

Awaju Omombeu:

Todas as pessoas têm pai e mãe dentro de si, e, também uma parte individual. Dentro de cada um existe pai e mãe, mas é a parte individual que não deixa que nós sejamos, apenas uma réplica, um ser duplo refletindo a influência fixa de duas partes: a paterna e a materna.

Na cultura guarani, quase sempre, o duplo aparece sob o disfarce de réplica – no sósia, na sombra ou reflexo do espelho de água - ,  porém, sua verdadeira condição não se reduz jamais ao mero papel de cópia. Pelo contrário, a aparição do duplo vem quase sempre denunciar a ilusão das aparências que se supõem conferir ao homem uma identidade, revelando o absurdo da suposta integridade que o constitui e o seu suposto equilíbrio.

Mas certamente, que a influência dos pais, que nos perpassa, não é igual, é desequilibrada, e, vivendo no meio dessa influência desequilibrada, estamos sempre querendo equilibrar-nos.

Como a realidade é desequilibrada, todo mundo está buscando o equilíbrio, e o encontra só desequilibradamente; no  duplo ser que somos, formados por partes desiguais.

Na qualidade de um outro desconhecido que lança a figura humana a indeterminação de sua própria imagem, o duplo interroga o princípio de toda

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

 

representação, precipitando o fim da crença na imagem e semelhança. Assim, nós existimos e nos sensibilizamos. Se existíssemos equilibradamente seria impossível que nos sensibilizássemos.

 

"Kwarayju omombeu:

Jukupe vivia em uma colina suave onde o sol de Tupã sempre se punha em tons rosáceos, quando uma brisa fresca vinda do sul conduzia o seu numeroso povo para perto do Tata Porã.

Porém a vida de Kaakupe com Jukupe não foi como todos esperavam. Muitas vezes Kaakupe teve que buscar consolo no espelho de água. Jukupe sentia muito ciúme de Kaakupe, por não entender o aspecto amoroso de sua esposa, e a obrigava a usar a máscara ritual sempre que se apresentava publicamente."

 

Awaju Omombeu:

Não há decomposição do antropomorfismo humano, sem que haja uma decomposição  do antropomorfismo divino (aquele do qual o primeiro é o modelo eletivo, aquele que o primeiro toma ficticiamente por modelo).

A máscara, na cultura guarani representa a própria encarnação do caos. São formas que se impõem aos rostos, não para ocultá-los, mas para acrescentar-lhe um sentido profundo. Daí seu parentesco com os monstros imaginários, na qualidade de artifícios que se acrescentam ao rosto humano para torná-lo inumano. As máscaras presentificam as incansáveis interrogações da humanidade.

 

 

 

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

 

Kwuarayju omombeu:

"Passado um tempo, Kaakupe engravidou, então Jukupe resolveu abandonar a aldeia de seu povo para viver isolado só com sua mulher.

O trajeto da viagem durou o tempo de gestação de Kaakupe. Quando pararam para montar o acampamento, Kaakupe pariu uma menina que nasceu desfalecida. Kaakupe pediu para que Jukupe lhe fizesse o Ykarai e que lhe desse o nome de Kaaiari. Então Kaaiari ia ganhando vida, enquanto Kaakupe ia morrendo. Jukupe passou a viver junto à uma cachoeira, no sopé de uma grande montanha.

Em Kaaiari brotou o mesmo amor que havia no coração de Kaakupe, e esta amou o rio, a montanha, a mata, os animais e todos os seres viventes.

Porém quando Kaaiari se tornou Kunhãtai, e teve a sua primeira menstruação, deixou este mundo.

Jukupe ficou abalado com a morte da sua filha. Definhava dia a dia, o sofrimento da perda estava consumindo a sua vida.

Em um entardecer, quando o seu espírito já não suportava tanta dor, viu que havia brotado uns arbustos muito formosos nos lugares onde tinha caído o sangue da menstruação da sua filha.

Então ele tomou algumas folhas daqueles arbustos frondosos e fez um chá, impelido pelo amor que sentia por sua mulher e por sua filha.

E tão logo  provou o chá, a sua força voltou, e foi tomado de um grande ânimo e de uma grande alegria. E notou que o amor que animava Kaaiari brotava em seu coração, e dentro dele sentiu profundamente a beleza do rio, da montanha, da mata, dos animais e

 

 

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

de todos os seres viventes. E logo lembrou do povo de sua aldeia e percebeu que o mesmo amor que animava Kaakupe agora também animava o seu coração. Então retornou para o seu povo, levando mudas

da planta que  manifestava a essência do espírito da sua esposa e da sua filha.

E dentro dele soou a canção de Xumé que diz que é bendito o homem e a mulher que devoram a onça, porque a onça se torna homem e mulher, e que é maldito o homem e a mulher que são devorados pela onça, porque o homem e a mulher se tornam onça. E saiu ensinando pelo mundo seu saber e plantando mudas dessa planta sagrada junto aos espelhos de água."

 

Awaju Omombeu:

Vários elementos são abordados neste último trecho da lenda da erva mate.

O primeiro diz respeito a forma como a mulher e os elementos da natureza, tais como flores ou folhas, por exemplo, são relacionados. Neste caso, Kaakupe e Kaaiari tendem a encarnar os mais elevados ideais de amor e beleza; todavia, não é descabido observar que se afirmamos a beleza das tenras folhas da erva mate, é porque elas parecem estar em conformidade com aquilo que deve ser, ou seja, por representarem, no que lhes diz respeito, o ideal humano. Nesse caso, o aspecto simbólico se sobrepõem a presença real dos seres em questão, sejam mulheres ou folhas, impondo a elas uma forma pura e sublimada. Na verdade , essa atribuição de valores nada mais é que uma fórmula abstrata, cujo sentido último seria o de transformar em elevado, nobre, sagrado, as formas naturais em permanente mutação e presentificação.

Isto porque a parte principal de cada acontecimento está interligada com a natureza, e, quando esta parte original, normal, natural, é ocupada pela parte ideal, desenvolvida abstratamente, perde-se o controle do processo vital.

 

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

 

A naturalidade é simultânea, não existe naturalidade separada, fragmentada; a naturalidade estilhaçada não ocupa lugar no presente, ou seja, no pensamento; mas sim no passado, ou seja, na lembrança; ou no futuro, ou seja, na imaginação.

Na realidade, quem encontra o amanhã dentro de cada momento, interligadamente com o presente, nunca encontra amanhã. O amanhã é uma ilusão. O presente é o momento em que o passado se transforma em futuro, constantemente; é o único lugar em que estas duas forças antagônicas se encontram. Dependendo da experiência do passado, e dependendo da aplicação da experiência no futuro, amplia-se, aprofunda-se o presente. Dependendo da profundidade, da amplitude do relacionamento com o passado e do relacionamento com o futuro, aumenta-se o presente.

Em contrapartida, o homem moderno procura na natureza o mesmo que busca na farmácia: remédios bem apresentados para doenças confessáveis. E na medida em que ele recua invariavelmente diante dos horrores múltiplos que compõem o quadro da existência, só lhes resta a fruição desses produtos minúsculos, únicos deuses do homem moderno. Ele que olha os deuses da natureza com presunção.

Por tal razão, o espírito moderno, nos melhores casos, só conseguiu substituir essas possibilidades do homem inteiramente sufocado de horror, por qualquer derivado genérico; ou, ainda, o espírito moderno nunca realçou outra coisa que métodos aplicáveis à ciência e a seus dogmas transitórios.

Este é um alerta para os que são descendentes de índios, para os que estão descendendo, se apagando; e para os ascendentes  de índios, ou seja, para os que estão ascendendo, para os que estão se acendendo. Índios no sentido dos que estão buscando a natureza, a naturalidade; e dos que não a estão deixando.

Awaju Poty – Kaaiari A Lenda da Erva Mate

 

sexta-feira, 11 de julho de 2008

COMUNIDADE GUARANI NO BRASIL

 

Para se compreender a religião Guarani e sua diversidade é importante ter conhecimento da sua dispersão territorial, das zonas de influência de cada grupo e da variação cultural dentro de cada grupo.

Habitualmente, localizam-se historicamente os Guarani no Paraguai, porém, o povo Guarani, não ocupava somente o Paraguai, mas tinha a área compreendida entre os confins do Equador e o Rio da Prata, quase todo o Brasil, e ainda o Uruguai e as províncias de Corrientes e Entre-Rios, na Argentina.

É costume se dizer, simplesmente, que ela ocupava o Paraguai porque a palavra Paraguai designava no século XVI toda a bacia dos três grandes rios que convergem para o Prata, até os Andes, do Chile ao Peru, bastante para o interior da Bolívia, do Brasil e do Uruguai, e mesmo dos Pampas ao sul de Buenos Aires, até os confins da "Terra de Magalhães".

Mais tarde, a administração colonial estabelece uma província mais restrita, sob o nome de Paraguai. Essa província, contudo, era ainda muito mais vasta que o Paraguai atual.

Grupos compactos de Guarani estavam escalonados até na cordilheira dos Andes. Escreveu Rengger: "Não é duvidoso que essa nação não tenha sido a mais numerosa da América do Sul".(Rengger, p. 101).

 Os Guarani formavam uma nação de muitos milhões de indivíduos, distribuídos de maneira mais ou menos densa sobre a metade do continente.

Era notável, aliás, do ponto de vista etnológico e filológico, a existência de povoados Guarani "num espaço de 45 graus de latitude e mais da metade desse número em longitude ... um espaço superior ao da Europa inteira. (...) Esse fenômeno é tanto mais extraordinário quando se observa que no meio deles encontravam-se uma grande quantidade de outras nações, muitas vezes reduzidos a um punhado de indivíduos, que falavam uma língua inteiramente diferentes". (Moussy, Tomo III, p. 153-154).

Ainda em meados do século XIX, Martín de Moussy observava que, "na província brasileira de São Paulo, no Paraguai e na província de Corrientes, o povo e as mulheres, sobretudo, não falavam senão o Guarani, (...) que não é menos que a língua geral que se falava desde a Guiana aos Andes e nas vizinhanças do Prata". (Moussy. Tomo II, p. 155).

A maioria das populações indígenas encontradas pelos invasores quinhentistas em terras da bacia Platina falava dialetos do idioma Guarani, estreitamente afim ao linguajar das chamadas tribos tupi, que dominavam quase todo o litoral brasileiro e grandes extensões do interior.

Entre os Guarani contemporâneos a consciência de unidade tribal não prevalece. Cada um dos subgrupos procura acentuar e exagerar as diferenças existentes. A diversidade dos dialetos, das crenças e práticas religiosas, de constituição psíquica e mesmo da aparência física serve de motivo para cada bando afirmar a todo o momento a sua diversidade.

"Os Guarani do Brasil meridional podem ser divididos em três grandes grupos: os Ñandewa, os Mbya e os Kaiowá". (Schaden, p. 2).

Atualmente os Kaiowá já não aceitam a denominação de Guarani; criando assim uma diferenciação que deve ser respeitada. Os Mbya se autodenominam de Guarani e os Ñandewa de Guarani tupi, que penso que deve ser também respeitado e que tem o seu sentido.

"Resumindo, pode-se dizer que a tribo Guarani, que em séculos passados dominou em grandes extensões dos estados meridionais do Brasil e em territórios limítrofes do Uruguai, da Argentina e do Paraguai esta hoje reduzida a poucos milhares de indivíduos (...) e (...) já não ocupam áreas extensas e concretas, mas estão confinados a pequenas aldeias ou reservas". (Schaden, p. 10).

Quem quer que procure conhecer em suas próprias aldeias o povo Guarani da atualidade, não deixa de perceber desde logo que certos domínios de sua cultura se apresentam inteiramente abertos a influências estranhas, ao passo que em outros é extraordinariamente forte o apelo aos padrões tradicionais.

Isso levou Egon Schaden a afirmar que, "de aldeia em aldeia, a experiência aculturativa dos índios Guarani assume formas específicas de acordo com a variação dos fatores. (...) Em suma: os Guarani talvez representem entre os índios atuais o exemplo mais apropriado para se estudar a variedade de reações aculturativas e anti ou contra-aculturativas, de uma determinada configuração de origem, bem como a importância dos fatores que interferem no processo". (Schaden, p. 13). Sobre a religião Guarani Schaden diz que:

 

 "Um fato que dificulta não pouco a descrição exata da religião Guarani dos grupos hoje existentes no Brasil, quer no tocante à doutrina, quer no ritual, é a extraordinária variabilidade observada de aldeia em aldeia, de um sacerdote a outro, ou ainda entre os representantes de um mesmo grupo. A sistematização dos elementos daria por si só margem para extensa monografia. As divergências e contradições, mesmo no interior deste ou daquele subgrupo, desta ou daquela aldeia, são tão numerosos e de tal modo acentuadas que se torna praticamente impossível apresentar a religião tribal em formulações "dogmáticas" ou peremptórias. Duas parecem ser as causas disto: primeiro, o caráter individual, ou melhor, individualista, da religião Guarani. Por destacada que seja a importância social das cerimônias religiosas e, vice-versa, o significado religioso das manifestações principais da existência comunitária, cumpre não menosprezar o extraordinário papel da vivência religiosa individual, pois em qualquer circunstância pode a pessoa entrar em contato com o sobrenatural, recebendo consolação, conselhos e revelações das divindades ou dos espíritos protetores, isto é, cada qual tem as suas experiências religiosas próprias, de acordo com o caráter e os pendores místicos de sua personalidade. Assim, no decorrer dos anos, vai formando -  sobre o fundo doutrinário comum, evidentemente – a sua própria concepção do mundo, o seu sistema interpretativo, com inovações ou "aberrações" mais ou menos "heterodoxas", de acordo com as suas tendências e experiências pessoais. Segudno Leòn Cadogan, que encontrou dificuldades semelhantes em suas pesquisas entre os Mbya do Paraguai, há fixidez e uniformidade notáveis no conjunto das doutrinas secretas, privativas dos sacerdotes, ao passo que as representações religiosas públicas estão sujeitas a grande variação.

Em segundo lugar, a multiplicidade de idéias e crenças deve ser interpretada em termos de incongruências decorrentes de contactos com a religião, de um lado, e da fusão das diferentes doutrinas subgrupais produzida pelas migrações, que levaram à formação de aldeias em que  se reúnem, em uma mesma comunidade de vida e de culto, famílias de dois ou até mesmo dos três subgrupos". (Schaden, p. 106, 107).

 

 

Egon Schaden atribui a duas causas a dificuldade que o estudioso encontra para dar uma descrição da religião Guarani dos grupos existentes no Brasil. Essa dificuldade que ele encontrou em 1954, perdura ainda hoje, de certa forma, também por essas mesmas instâncias. E essas dificuldades segundo Schaden são: primeiro o caráter individualista da religião Guarani, eu preferiria dizer caráter pessoal e, segundo, a fusão das diferentes doutrinas subgrupais devido à aglutinação em uma mesma aldeia de diferentes grupos e subgrupos e ainda de substratos distintos.

Certamente esses dois fatores colocados por Schaden são bastantes importantes, mas hoje não se pode relegar a importância da dispersão geográfica, da rarefação da população que de alguns milhões passaram a ser alguns milhares de indivíduos. E também, os resíduos de antigas influências e das influências atuais, que para alguns indivíduos ganha destaque e que para outros é relegada a menor importância, dependendo mais da afinidade da liderança religiosa (paje) e de seus adeptos para com um aspecto ou para com outro do enorme acervo mítico, cosmológico e cerimonial do Ñande Reko (da religião Guarani).

A seguir apresento alguns mapas e um esquema descritivo da localização das aldeias e da zona de influência do caminho do Peabiru, zona de influência de Xumé (Tomé).

No primeiro mapa apresento o caminho de Peabiru descrito por Ulrich Schmidl, de 1553, segundo a reconstrução de Reinhard Maack. Depois uma reconstrução atual, de 2001, feito no "I Encontro Nacional dos Estudiosos do Caminho de Peabiru".

Seguindo apresento um quadro geral das aldeias do litoral feito pelo CTI, Centro de Trabalho Indigenista, datado de novembro de 1991.

Depois trago quatro mapas onde estão localizados as aldeias apresentadas no quadro, que são: as Aldeias do Litoral e primeiro planalto do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Por fim apresento um mapa da região da Baía de Paranaguá e o mapa da histórica República Guarani.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

Ladeira, Maria Inês. O Caminhar sob a Luz. PUC/ Tese. São Paulo, 1992.

Moussy, Dr. Martin de. Description Geographique et Statistique de la Confederation Argentine, Paris, 1860-1864, 3 vols., 1993 páginas.

Rengger,Dr., Reise nach Paraguay, Aarau, 1835, 150 páginas em francês e 350 páginas em alemão. O Dr. Rengger, de Baden realizou a sua viagem ao Paraguai em 1818 a 1826, na companhia de seu amigo, o valdense Longchamp, que colaborou na redação.

Shaden, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. EDUSP. São Paulo, 1974.