quinta-feira, 17 de março de 2011

KORATÃ - Ara Aguyje/ 2011

Neste texto retomo alguns temas que se apresentaram em “aty, nas cerimônias que realizamos durante o “guata porã”, a caminhada sagrada, de treze dias em que andamos pelo vale do rio Dolores, na Argentina.
Escrevo para os caminhantes das cinco noites e dos treze dias que participaram dessa jornada e também para partilhar com os que não puderam estar presente, um pouco do que vivenciamos, pois, por outro lado, senti que todo o nosso povo Guarani de uma forma ou de outra esteve conosco, na reza, no espírito.

A MINA
Na primeira noite de cerimônia dormimos em uma oka onde não pudemos acender o tata porã, fogo sagrado, pelo fato de enfumaçar o ambiente, o exaustor não estava adequado, e por mais que tentássemos concertar, não dava certo, mas em nada nos abateu esse desagradável incidente, nesse enfrentamento inicial já pude sentir que estava com um povo bem guerreiro. Pela manhã, partimos do tekowa Pu’aka, da aldeia de “La Victoria”, seguimos pelo leito de uma canhada seca e já no entardecer estávamos adentrando nos legendários montes de Córdoba. A segunda noite nos encontrou sentados ao redor de um tata porã, fogo sagrado, no alto de um serro, junto à boca de uma mina de cobre de tempos imemoriais, de onde avistávamos a montanha do Uritorco. Por toda a noite fomos sobressaltados por morcegos sedentos, insistentes, de vôos rasantes.
No silêncio acumulado da vegetação me acomodei abrigando minha rede entre os galhos de dois Quebrachos Colorados. Adormeci olhando o céu descortinado e, sem me desprender da noite, sonhei com uma semente que caia sobre um leito de cobre, como uma estrela cadente; pensei: “é um ninho de trevas insepultas”. Dentro dessa semente multidões de povoados guardavam o porvir das colheitas, trançavam fibras, e em enredadeiras têxteis confeccionavam flores multicoloridas.
Toda uma existência brotou dessa semente verde de cobre oxidado: todo um campo, uma agricultura que como um rio de miríades de grãos de ouro jorrava em panelas de vapores perfumados, estendendo-se sobre contas de sol. Mas no horizonte havia dores, a selva vista dali era uma gruta azul.
Na gruta tudo era silêncio de pedra e musgo. Olho o vazio, não há ninguém, somente arbustos e pedras de quartzo branco, feito água na noite clara. Somente cabeleiras vegetais quebram essa ausência. Brilhando com a lua todos esperavam sua morte diária. O que entregava a morte dizia: “O ser como o milho se debulha no inesgotável celeiro dos dias desfeitos”.
O vento balançava as redes no ritmo de uma canção que dizia assim: “mil anos de ar, de mão azul etérea, com suaves e cuidadosos toques lustraram este solitário recinto de pedra”. Então olho a parede desgastada da mina e toco a superfície impregnada do suor de um rosto que olha com os meus olhos e toca com as minhas mãos o meu rosto cansado.

O VALE
Pela manhã descemos em direção ao vale, e já nesse segundo dia de caminhada estávamos junto ao ponto que tínhamos como referência. Foi o prazer de ouvir o canto da água após todo um dia de percurso por terra árida e vegetação crestada.
Toda a tarde transcorreu sem tempo, largas horas de sol ardente, dentro da água como num útero de frescor, abrigo de prazer junto a mim. Pude ouvir sem que ninguém visse que você veio de onde eu vim, do amanhecer da terra sem nome, de um ventre de argila, me contou também da paz de teu reino que todo povoado de perfumes tem uma eternidade secreta onde a lua não pode alcançar nem pratear no outono.
Já a terceira noite nos encontrou sentados ao redor do tata porã nas margens de um rio cristalino, entre paredões enormes nos sentíamos pequenos naquela magnificência da natureza e ao mesmo tempo majestosos por sermos parte daquela nobreza como filhos de Ñandexy Ywy retã, nossa mãe terra.
O aywu, a fala-meditação dessa noite nos recordou de lembranças adormecidas, de tempos ancestrais, de quando homens e mulheres caminhavam pela terra coletando seus frutos e adormecendo assim, ao redor de um tata porã, no aconchego de seus entes queridos. E tinham o seu sono acalentado por uma canção, por uma história ou pela emergência de um tema, quando o saber era então dessa maneira perpetrado, desenvolvido ou renovado.
Nessa noite o espírito do aty nos falou sobre o Koratã, como algo que esta para além do sonho e por tanto do que é possível de se dizer e que sendo assim, tudo que se disser não é, mas que por distração ou descuido por vezes voltamos a falar, neste caso foi mais para sentir a impregnação da voz no silêncio.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty

Acabei dizendo que Koratã é a expressão do coração de Ñamandu, do coração de cujo centro emana as cores que salpicam os campos em forma de flores, ou os ares em forma de pássaros; e que é como um fio de luz na mão de um tecelão ou de uma tecelã que trama o passado, o presente e o futuro do mundo. E que koratã é também a canção que está gravada no coração de todo homem e de toda mulher, ou a urdidura aonde o tecido da vida vai ganhando a sua conformação.

ALGARROBO
Não tivemos dificuldade na sustentação de nosso corpo. Nas margens do rio Dolores havia muito agrião, e nas margens dos caminhos pitanguy’i e xania. Levamos conosco bastante petã, tabaco, e kaayu, mate guarani para o alimento cerimonial; o sol nos supria durante o dia com a sua luz, e à noite as estrelas e a lua. À noite acendíamos os petyngua, as respirações se convertiam em fragrâncias, como rosais de ares espectrais.
De dia coletávamos vagens doces de algarrobo, era como mamilos, mamávamos de seus frutos, com eles fazíamos um chá bem espesso, destilávamos leite. Árvore mãe, existência territorial, um antigo aroma propagado pelos interstícios da terra. Ruga e extensão sob uma suave povoação de estrelas, sarça selvagem que nos pegou no colo como crianças extraviadas de alguma mãe, teu instinto nos abrigou e amamentou.
Por todos os dias o sol nos forneceu sua cálida energia, sempre esteve brilhando no céu. Entretanto, assim como a nuvem que intercepta seus raios , a chuva que nos molha e o vento frio que nos faz tremer, houve momentos em que o sol desapareceu de diante das pessoas, como se guardasse o silêncio.
Mesmo nesses momentos, Kwaray, o pai-mãe sol, que irradia inabalável luz dourada, esta presente, acima do mar de nuvens. E ainda que num determinado momento a luz dele (a) desapareça do coração dos homens e das mulheres da terra, seu “yxa”, seu feixe radiante, jamais deixa de penetrar por entre as nuvens.
Kwaray, o sol, é a emanação de Ñamandu visível para todos em nosso mundo. E Ñamandu é “Ña”, aspecto feminino, e “man”, aspecto masculino. Em algumas línguas se diz “manu” em lugar de “mandu”. “Mandu’a” é a memória genética do mundo. Em outras línguas se diz “Emanu”; em hebraico, língua que os guarani falaram no período missioneiro se diz “Emanuel”, “el” frisando o aspecto divino.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty
Ou seja, a melhor tradução para Ñamandu é Emanuel. E a sua presença mais evidente entre nós são seus raios.
Podemos sentir Ñamandu, na noite, através de nossa avó Jaxy, a lua, ela é médium do sol. Também podemos vislumbrar através dos outros sois, de Jaxy tatá, as estrelas. E do tata porã, o sol que emana dos vegetais. Nosso ñeem, espírito, é fogo, é luz, podemos senti-lo através do calor dos homens e das mulheres enquanto estão vivos.
Galhos secos de algarrobo que coletamos nos montes, nos possibilitaram o fogo, iluminando e aquecendo nossas noites. Seu néctar nos deu caloria, ativando nossa chama interior. Kwaray estava em seu interior, emanava de seu Koratã. Sol vegetal. Árvore relâmpago, árvore trovão, tupã sobe por suas raízes, teus frutos te resumem tornando-se parte integrante de nosso amor para sempre.

RUWYXA
No quarto dia uma parte da tribo retornou ao acampamento base, ao Tekowa Pu’aka. Sua jornada terminaria na quinta noite. Haviam cumprido o seu propósito. Permanecemos com um pequeno grupo de pessoas que caminhariam por treze dias. Na quinta noite dormimos cedo, sentimos muito a ausência dos companheiros e das companheiras que tinham partido.
No quinto dia um grupamento de Awa Guarani passou por nós e nos saudou, parecia que tínhamos visto uma miragem ali naquele lugar ermo. Na verdade ainda não sei com certeza se o grupamento de Awa que cruzou nosso caminho era deste mundo de matéria grossa ou se era do mundo de matéria fina. Esse tipo de fenômeno aconteceu muitas vezes comigo quando trabalhava na pesquisa de campo da dissertação sobre a “Arte do Mimby”.
Na sexta noite o espírito do aty falou sobre si. Falou sobre o Ruwyxa, o espírito guia e sobre o Jukupe, o espírito guardião. Disse que há muitos e muitos milênios atrás não havia o jukupe, o espírito guardião, ou anjo da guarda. Os viventes de Ñandexy Ywy Retã, de nossa mãe Terra, possuíam coração amoroso, e assim comunicavam-se diretamente com os Ñeem Porã, com os espíritos sagrados, com os espíritos santos, com o grande espírito. Nessa época não havia o inverso, o Inferno, nem maus espíritos.
Não havia, portanto, necessidade de espírito guardião para proteger um vivente da Terra.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty
Porém, em um determinado momento da existência do mundo, espíritos desarmônicos começaram a criar o Inverso, ou o “Mundo das Trevas”, na mais baixa dimensão do Universo. Como a luz de Ñamandu não chega ao Inferno, por ser barrada pelas nuvens tenebrosas; para sobreviver assim, eles passaram a conturbar o mundo terreno e se alimentar da emanação gerada por “Marã”, a desarmonia. Para isso os espíritos do inferno foram invadindo sorrateiramente o coração dos homens e das mulheres da Terra fazendo com que eles perdessem a dignidade e o respeito por si e pelos outros seres viventes de seu orbe.
Para evitar esse completo descalabro, os Ñeem Porã Subdividiram-se em cinco, ou seja, em principio, o espírito guardião é escolhido a partir do grupo de almas criadas no Mundo Espiritual mediante a divisão da luz, ou a partir do grupo de almas constituídos pelo sistema de um espírito-principal e quatro espíritos-ramos. Porém, para missões especiais na Terra, foi instituído o sistema de Espirito Guia, em que espíritos-especialistas são designados para desempenhar esse papel.
Desta maneira, consolidou-se esse sistema: de Jukupe, Espíritos Guardiões e Ruwyxa, Espíritos Guias. Mas, mesmo assim uma grande massa de gente da Terra continua tendo seu destino manipulado pelos espíritos do inferno que desta maneira deles se alimenta, e após seu desencarne os arrasta para os seus umbrais.

KORATÃ
No sexto dia chegamos ao coração do vale do rio Dolores. Um lugar indescritível. Na margem direita do rio, no sentido da jusante, subindo por um caminho de pedras preciosas - parece recurso literário dizer que o caminho é repleto de pedras preciosas, mas é pura realidade - seguindo por esse caminho chegamos a uma fonte. Uma bacia de pedra de cujo fundo brota uma água cor de champanhe e com sabor de champanhe. Creio que o sabor mais próximo ao dessa água é o de champanhe.
Pude ver com a visão do espírito que desde tempos imemoriais ali os nativos vinham para buscar a cura de todos os seus males. E que agora mesmo habitando outros mundos para este lugar vinham para buscar alento ou por saudade. Em seu entorno havia anjos curadores e zeladores, trabalhando na sanação e mantendo o lugar em harmonia. Mesmo transcorrido tantos milênios o lugar estava em perfeita harmonia.
Porém entretido na leitura das várias camadas do tempo deixei de perceber um detalhe muito curioso. Xerayxy Yxapy Rendy me chamou a atenção para uma inscrição
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty

que havia na cabeceira da fonte. Estava escrito em signatura Karaiwe, entalhado na rocha: “Awaju”. Então percebi que um mbaekwaa tinha me deixado esse sinal, e que este momento tinha sido previsto, ou seja, que ali me encontrava para cumprir um desígnio. Era uma mensagem que tinha varado o tempo, e ali cumpria seu destino. Senti uma emoção que me pressionava o coração para a garganta, uma memória que não consegui racionalizar.
Na sétima noite o espírito do aty nos falou sobre o coração, explicou que a emoção que sentimos e que não conseguimos explicar se passa em um órgão análogo ao coração e que esta, na verdade, em nossa alma.
Enquanto no centro do corpo humano existe o órgão chamado coração, pya em Guarani; dentro da alma, parte do espírito que mais se assemelha ao corpo humano, existe um centro que é o Koratã. Podemos por analogia dizer que a alma tem o coração na região próxima ao coração orgânico. Mas, na verdade, o coração é um órgão que controla a circulação sanguínea no corpo e, portanto, não é o coração no sentido espiritual. Mas se, por um lado o órgão físico pode não ser o coração no sentido espiritual, por outro lado, existe uma relação bastante estreita entre eles; além de ser um órgão do corpo que sofre bastante influência espiritual.
Contudo, como se diz desde tempos remotos, quando o coração espiritual se abala, o orgânico começa a bater forte e rápido; ou quando caímos em profunda tristeza sentimos um aperto neste; ou ainda, o calor que percorre o corpo nos momentos de alegria, as lágrimas que brotam na hora de angústia, tudo ocorre a partir da região próxima a esse órgão em nossa alma.
O homem e a mulher em si são uma parte do corpo consciente de Ñamandu e, ao mesmo tempo, um microcosmo completo. Portanto, a ação do coração humano tem a mesma raiz da ação criadora de Ñamandu. Cada coisa que pensamos dentro do coração está criando algo em algum lugar entre o espaço tridimensional e o espaço multidimensional. E o conjunto de pensamentos individuais se transforma na força que cria o Mundo.
Dessa forma, se surgirem boas almas desejando a transformação desta terra e, se houver concentração e amplificação desse pensamento, de um canto a outro da Terra aparecerá a Luz. Esta luz irá permear os corações das pessoas, e a harmonia se ampliará cada vez mais, restabelecendo-se o respeito entre os seres viventes. Assim, nosso orbe se transformará em “Ywy Marã Heym”, a Terra Sem Mal.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty

Mas, o inverso também pode ocorrer. Quando este mundo ficar repleto de pensamentos negativos, isto é, de ódio, de ira, de ciúmes, de falta de confiança, de egoísmo, o que acontecerá? Olhando com os olhos espirituais veremos que os pensamentos negativos aparecem em forma de nuvens negras, tal qual numa tempestade, em diversos pontos da Terra. E que esses corpos energéticos trazem consigo forças físicas que provocam o desencadear de Marã, ou seja, de desarmonias e catástrofes.
Avançando um pouco mais nesta senda vamos explicar o conceito Guarani de “Uma flecha, cem mil alvos”.
No coração das pessoas em geral há um arqueiro que está sempre em movimento, apontando para diversas direções num único dia. Contudo, a maturidade está dentro da harmonia e não em meio ao coração instável e agitado. Para onde aponta a flecha ai também está o coração direcionado. Se ele balançar o dia todo, o homem e a mulher não conseguirão atingir a verdadeira serenidade do coração.
Tal como o Cruzeiro do Sul, que sempre mostra ao povo o rumo sul, a flecha do guerreiro e da guerreira deve também sempre apontar para a direção de Ñamandu. Um guerreiro e uma guerreira, xondaro e xondaria, deve orientar-se de viver tendo sempre o coração de Ñamandu como seu próprio coração. O Koratã do xondaro e da xondaria incandesce quando vislumbra que todos os alvos se encontram em Ñamandu. Por isso: “Uma flecha, cem mil alvos”.

MBORAYU
A fonte de água borbulhante, de água gasosa como champanhe, foi o ponto culminante da nossa caminhada, ali permanecemos por dois dias. Com um amigo subi uma pequena montanha em forma de pirâmide. Caminhamos sobre quartzo branco, quartzo rosa, turmalinas negras, um caminho ladrilhado de pedras luminosas. No dia seguinte iniciaríamos nosso caminho de regresso para a aldeia base. Nesta noite desfrutei da natureza encantado com o céu aberto salpicado da luminescência proporcionada por uma tormenta elétrica. Assim que o sol se punha em sua magnificência, cactos brancos abriam suas flores perfumadas enfeitando os penhascos como adornos em corpos enluarados.
No caminho de regresso passamos por muitas taperas de pedras. Aqueles resíduos de residência haviam servido de abrigo para nossos ancestrais Xinguy, e que hoje são
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty

referidos pejorativamente como “xingones, comechingones”. Pude apreciar muitos espíritos ainda residindo nestes lugares, unidos pelas suas alegrias e pelos seus tormentos. Pude ainda perceber o trabalho incansável dos jukupe e dos ruwyxa, que ali estavam com um “mboru”, ou seja, com uma determinação de propósito que lhes é próprio, buscando demover nossos irmãos das suas ilusões.
Na oitava noite o “Espírito que nos Une” se apresentou e nos falou sobre si. Sobre Ele, o mborayu. Sobre o “Espírito que nos une”, escrevi uma tese com mais de duzentas páginas. Mas o mborayu sempre traz novidade. Seu tema é inesgotável.
Desta vez iniciou contando uma história sobre um velho rei que subindo no terraço de seu palácio para tocar sua harpa e cantar um salmo recorda do dia em que avistou a mãe de seu herdeiro, o sábio dos sábios. Tinha ele levantado de seu leito, à hora da tarde, como no dia de hoje. E viu do terraço a uma mulher que se estava lavando; e era esta mulher mui formosa à vista. E ele a teve. Ela era esposa de seu mui fiel general, que ele mandou para a morte no front de batalha. No dia de hoje o Rei cantou uma canção em memória de seus dias, da felicidade e do perdão, que dizia assim:
“Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada. Bem-aventurado o homem a quem a hierarquia não imputa maldade, e em cujo espírito não há engano. Enquanto eu me calei, envelheceram os meus ossos pelo meu bramido em todo dia. Porque de dia e de noite a tua mão pesava sobre mim; o meu humor se tornou em sequidão de estio. Confessei-te a minha falta e a minha maldade não encobri; dizia eu: Confessarei as minhas transgressões; e tu perdoaste a maldade do meu crime. Pelo que todo aquele que é santo orará a ti, a tempo de te poder achar; até no transbordar de muitas águas, estas a ele não chegarão. Tu és o lugar onde me escondo; tu me preservas da angústia; tu me cinges de alegres cantos de livramento”.
O velho rei que fez esta canção chamava-se Davi, e este canto é o Salmo trinta e dois. Nele são apresentadas cinco estâncias do mborayu.
A primeira estância que podemos observar neste relato bíblico é a do mborayu como o “amor que ama”. Esse tipo de amor não deixa de ser também o do “amor que se dá”. Esse é o tipo mais básico e geral de amor. O “amor que ama” é aquele que podemos esperar de todas as pessoas, e, instintivamente todos conseguirão entender o quanto é maravilhoso, pois o homem e a mulher, por natureza, já são feitos para sentir felicidade através do ato de se dar. A concretização desse amor é o primeiro passo para a criação da “Terra Sem Mal”.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty

A segunda estância que observamos no relato sobre Davi é a do “amor que alimenta”. Tal qual a água do rio que corre da montanha para a jusante, o “amor que alimenta” é um amor que flui e orienta uma direção.
O “amor que ama”, que proporciona afeto às pessoas com quem temos afinidade, e o “amor que alimenta”, que orienta e abastece as pessoas, são maravilhosos. Mesmo assim, o segundo ainda não é plenamente suficiente para chocar o “ovo de luz”. Existem outros tipos de amor que transcendem o afeto e a nutrição, o amor da terceira estância é mais quente e tem maior eficiência no parto da luz. Esse é o “amor que perdoa”. O velho rei cantou com gratidão: “Tu perdoas-te a maldade do meu crime”.
Os praticantes do “amor que perdoa” com certeza têm vivenciado o grande salto ao estado espiritual religioso; em outras palavras, este amor é o estado de espírito das pessoas que se dedicam exclusivamente à sua própria missão, transcendendo o bem e o mal. Para se atingir esse estado de espírito, o aguyje, é necessário que se passe pela experiência do despertar espiritual, tal como a de se converter a partir da conscientização da sua própria ignorância. Somente os que descobriram a luz no meio do próprio sofrimento conseguem tirar a venda dos seus olhos e a dos olhos alheios e amar o verdadeiro caráter sagrado de toda a existência. Ao se dar conta dessa realidade o velho rei consciente das dores que passou cantou em memória da sua lapidação: “o meu humor se tornou em sequidão de estio”.
A próxima estância é o do “amor de misericórdia”, misericórdia significa luz de amor que ilumina a todos indiscriminadamente, em outras palavras, misericórdia é amor universal. O “amor de misericórdia” é tal que, existindo neste mundo um ser que o possua, se ele estiver ao seu lado num momento de sua vida, será capaz de lhe proporcionar a reformulação da alma. Essa é uma existência que clareia o mundo e acende a chama de esperança dos homens e das mulheres que compartilham com ela da mesma era. Não se trata do amor por este ou por aquele, tampouco de palavras bonitas que possam ser usadas. Não é o amor em função de gestos carinhosos. A simples existência de um ser assim por si só é um ato de amor; seria como se o amor em si manifestasse sua personalidade, tais pessoas existem e abrilhantam a história do mundo. Em louvor ao “amor de misericórdia” o velho rei cantou: “tu és o lugar onde me escondo; tu me preservas da angústia; tu me cinges de alegres cantos de livramento”.
A máxima estância perceptível do amor na Terra é o “amor de Emanuel”, o amor de Ñamandu conosco, amor que transcende o coração dos homens e das mulheres.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty

Em contrapartida, a mínima estância desse amor é o “amor do instinto”. Dependendo da forma como é usado o instinto, ele pode sintonizar o ser tanto com o inferno como com o Mundo Astral; de qualquer maneira, este não é o amor que um homem e uma mulher que trilham o caminho do xondaro e da xondaria, ou seja, dos guerreiros da luz, devem almejar.
Um alerta, porém, é importante, em hipótese alguma o amor pode ser interpretado como aprovação às atividades dos seres malignos. Estes são interceptadores do amor de Ñamandu dirigido aos seres humanos, e suas existências são a antítese do amor. Um xondaro ou xondaria deve lutar com os seres das trevas usando como trunfo a arma do “perdão ativo”. Porque há trevosos que percebem que não podem vencer Ñamandu e atravessam o “portal do perdão”.
Mborayu endy mbae, ou seja, amor é luz. Da mesma maneira que não há trevas que vençam a luz, não há mal que vença o amor e não há inferno que intercepte o avanço do grande rio do amor até a última instância.
Pensa-se que os anjos e os demônios lutam com equilíbrio de forças, mas isso não é verdade. O Mundo Celestial inicia-se no Mundo Póstumo da quarta dimensão e vai até dimensões superiores remotas. Em contrapartida, o inferno é apenas uma parte sombreada da quarta dimensão onde nuvens tenebrosas impedem a incidência da luz-amor de Ñamandu.
O fato de a força de influência do inferno ser superestimado é justificado pela proximidade do seu campo espiritual com o do mundo terreno, e a conseqüente facilidade de captações recíprocas de ondas vibratórias.
Amor é o ato de se dar. Porém, no inferno só existem espíritos que querem receber, e que esperam que lhes façam algo. Sofrem ali pessoas que, na Terra, viveram com “amor possessivo”, sem conhecer a sua essência.
Ainda não é tarde para se acabar com o inferno. É apenas necessário fazer com que todos os homens e mulheres tenham consciência de que a essência do amor é se doar. Então qual seria o primeiro passo?
O “amor que se dá” começa pela “gratidão”, poderíamos mesmo chamá-lo de “amor gratidão”. Agradeça por estar recebendo tudo de Ñamandu. Assim fazendo terá desejo de retribuir, de alguma maneira a Ñamandu, a “natureza de todos os mundos”. Nesse momento se dá a primeira martelada que levará à ruína o manicômio das sombras. Mesmo os maus espíritos desejam ser amados mais e mais, querem receber carinho das pessoas; os seus verdadeiros sentimentos são de “carência afetiva”.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty
Portanto, os espíritos do inferno são, na verdade, SERES INFELIZES, QUE DEVEM SER SALVOS; SÃO DOENTES que se degradaram até a última instância, mas cuja enfermidade, na verdade, é “carência afetiva”.
AMA
Nas noites seguintes o espírito do aty não se manifestou por minha boca. Permaneci em silêncio. Durante os dias que transcorreram, observava os elementares em suas lidas. Rezei muito para que seres daninhos nunca dali se aproximassem com suas ganâncias. Rezei para que fossem preservados os minérios, a água pura que corre entre quartzos e turmalinas, os cactos, os montes, os animaizinhos, enfim todo esse espaço encantado que ainda persiste, como um testemunho de outros tempos, de tempos em que éramos absolutamente felizes.
Nos dias ensolarados senti intensamente o coração ardente da natureza, de nosso pai-mãe sol, Kwaray esteve esplêndido. Cantei silenciosamente nas margens do rio Dolores um canto de louvor ao portal que une os viventes de todos os mundos, e à noite adormecia sentindo a acupuntura dos raios luminosos das estrelas e a benção de Jaxy, a avo lua que nos nutria com sua luz azul.
Ainda foi a xerayxy Yxapy Rendy que me chamou a atenção para observar uma incrustação de quartzo em uma das encostas onde estava gravado um arco e uma flecha. Novamente recordei do aforismo: “Uma flecha cem mil alvos”. Era como se o aforismo estivesse ali gravado desde tempos em que o ser humano ainda não se encontrava em Ñandexy Ywy Retã, ou seja, deste um tempo em que a nossa madre Terra ainda estava aguardando por seus filhos humanos, grávida de nossas almas, preparando-se para nos receber, nos esperando com seus cuidados.
Ainda comovido com o dia, fui para a minha maka, rede de dormir. Recém tinha adormecido, já estava bem adentrada a noite, quando no yxa de Jakaira, um pássaro que nunca antes tinha manifestado seu canto, nos acordou como dando um aviso, era o prenúncio do que estava por vir. Em seguida veio um vento a galope como se um exército garboso por nos trespassasse. Então retumbaram os trovões anunciando a chegada de Tupã. Cingiram os céus raios que entrecortaram o breu da noite iluminando os penhascos e refletindo-se no rio que se aprumou como se estivesse fazendo uma contradança. Era “Ama”, a tempestade. A princípio nos assustamos, em seguida reagimos providenciando abrigo mais seguro. Depois de acomodados pudemos desfrutar daquele maravilhoso espetáculo onde movimento, som e luz se entrelaçavam brindando conosco a vida e a alegria de existir por existir assim, em festa.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty
INCANDECÊNCIA
Nos dias e nas noites restantes um mborai, um canto, esteve constantemente comigo. Mãos destras tangeram minha alma, era o “Oporaiwe”, o anjo da música. Caminhei como flutuando e dormi como se estivesse desperto. Desfrutei das várias dimensões do caminho. Quando me dei conta estávamos nas cercanias do Tekowa Pu’Aka. O canto estava em “Aywu Porã”, a linguagem sagrada, seus versos estão gravados em meu coração. Traduzido o canto dizia assim:
“É maravilhoso sentir o coração como o Sol dos sóis do universo. O Sol do supremo Hierarca é nosso Estandarte. Maravilhoso é este Estandarte, como um poder invencível, se nossos olhos já assimilaram sua irradiação refletida em nosso coração. Quer seja o coração chamado morada de Ñamandu ou de síntese das sínteses, ele ainda permanece como um ponto de fogo, tata porã. Olhar com os olhos do coração, escutar os ruídos do mundo com os ouvidos do coração, perscrutar o futuro com a compreensão do coração, recordar as acumulações do passado através do coração; perceber a beleza que reflete a mais minúscula das flores, a emanação desse amor irrestrito, é ter toda a sabedoria do mundo. Esse estado de gratidão pela vida é aguyje, o estado de louvação”.
O sol da tarde refletia a sua luz branca na areia branca da canhada seca. Nossa caminhada estava chegando ao fim. Sentíamos a emanação confusa que vinha do Tekowa; porém nos já a antevíamos.
Quando andamos na natureza em guata porã atingimos um estado de leveza que nem sempre é possível de ser mantido em meio às atribulações do “dia a dia”. Porque se assim acontecesse haveria uma incompatibilidade de tom. Então é preciso uma adequação.
Ao aproximarmos do tata porã externo, estava uma Waimi colhendo flores para enfeitar o local do fogo externo para a nossa chegada. Foi um bom prenúncio para nós, foi uma adequação suave.
Nossa presença súbita foi uma surpresa. Havia pessoas de bem pouca experiência junto ao fogo. Tivemos paciência e esperamos pela aproximação de todos os que fizeram o apoio externo. Todas estas dificuldades já eram esperadas, ou seja, não nos impactaram. Focamos no amor-compreensão.
Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty


O grupo que nos antecedeu, que chegou ao Tekowa na quinta noite, porém, não teve a mesma sorte, e não conseguiram transcender esse ambiente desarmônico, muitos deles ficaram bem descontentes com a recepção. Que haveria tanta desconsideração pelo cansaço destes nossos companheiros era uma coisa que não tínhamos previsto.
Sempre que a hierarquia dá uma tarefa a um servidor, lastimavelmente este a assume como posse, como poder, e aí se perde; os servidores da terra estão subvertendo o seu papel, abrindo brechas para as hostes do inferno. E porque isso acontece?
Os servidores querem ser reconhecidos pelo seu serviço pelos próprios pares, esquecem que é para Ñamandu que estão trabalhando e que não devem esperar nenhum reconhecimento prévio. Ao desejarem o amor dos homens e das mulheres ou reconhecimento, que é outra forma de manifestação da carência afetiva, entram na vibração dos que desejam ser amados, dos que têm necessidade de se afirmar, ou seja, na vibração das trevas. Deixam de desfrutar do amor de Ñamandu porque invertem o foco.
Os saberes mortos, os conceitos mortos, tudo que carregamos de desnecessário, tudo que já morreu e que mantemos em nós, apenas nos deixa pesados, pesarosos. O depósito desses entulhos é o “Aikwe”, que traduzido creio que poderíamos chamar de “Ego”. O Aikwe pode ser maravilhoso quando é um ser vital, quando é uma centelha brilhando no peito. Mas quando é turvado pelas nuvens trevosas da auto-idolatria, da fascinação por si mesmo, é a porta de entrada dos demônios do ciúme, da inveja e da traição. Mas tudo estava bem, uma waimi silenciosa, que tinha passado despercebida por todos, que tinha tido um gesto ignorado por todos, tinha sanado todos os males, com um buque de flores silvestres.
No interior da Oka não havia sido diferente, a ausência de um Tata Porã, a adequação às chamas de um Tataendy, à chuva que entrou pelas goteiras inundando o ponto do fogo, a falta de experiência e insubordinação aos mais experientes por parte de algumas das pessoas que fizeram a permanência na Oka, também tinham gerado desarmonia. Ou seja, a vida é enfrentamento, precisamos ser guerreiros e guerreiras de coração ardente, incandescentes chamas de luz para garantir a existência da felicidade.


Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty

KORA
À “dinâmica do espírito que nos une” o povo Guarani Ñandewa chama de “Kora”, a lei. Na verdade a infelicidade é o termômetro dos atos que cometemos por ignorância, por ignorarmos o “Eu” da vida, do mundo e, sobretudo, daquilo que suscita, destrói e reproduz a estes últimos desde sempre e para sempre: a ordem da natureza. Infelicidade é o cenário que se proporciona o que dentro da sua ignorância deifica-se, mostrando-se egocêntrico, exclusivista e arrogante.
Neste mundo de matéria grossa, há dois antagonistas em todos os níveis, “Aru-Axy”, fêmea e macho, bem e mal, quente e frio, trevas e claridade, vida e morte, alegria e tristeza, amor e ódio, saúde e doença, felicidade e infelicidade, riqueza e pobreza, forte e fraco, material e espiritual. São os dois lados das coisas. Umas são dominadas pelos fatores “Ru”, outras pelos “Xy”. Estes dois lados são como as duas partes de uma mesma maçã, em suas extremidades se tocam e se confundem.
Para ultrapassar esta aparente contradição é preciso elevar-se acima de todos esses julgamentos aparentes até o nível do julgamento supremo universal, o julgamento absoluto e único do monismo formado pelos opostos complementares.
Só os que percebem os dois lados das coisas podem abarcar todo o antagonismo e o transformar em complementaridade, todos os que têm alguma coisa contra neste mundo são agônicos, jamais terão paz. A paz é outro nome que temos para dizer harmonia, saúde perfeita, felicidade eterna, liberdade infinita e justiça divina.
Todas as civilizações conhecem o Kora, sobre nomes diversos essa lei de equilíbrio é conhecida de todos. Uns a chamam de “positivo-negativo, outros de Yin-yang” e assim por diante. Até mesmo utilizam este conhecimento para manipular a energia da matéria, mas poucos a aplicam para manter o equilíbrio da vida.
Nesta caminhada tivemos o céu e o inferno disponível para cada um, ou seja, a face e o verso. Quem não conseguiu manter o foco na unidade (uni), certamente viveu o inverso (verso). Por outro lado, a existência sempre estará nos oferecendo novas oportunidades, ou seja, quem não aprendeu nestas circunstâncias propícias, terá a oportunidade de revisar, de reciclar a sua vida em outro momento. Kwaray nosso pai-mãe sempre estará brilhando mesmo sobre as nuvens mais espessas da tempestade, esperando pela nossa bonança, para a realização de nossa felicidade.

Ara Aguyje/ 2011
Awaju Poty