quarta-feira, 30 de maio de 2012

ÑEMANO: A MORTE



Em aty realizado no Tekowa Pu’aka, na última lua crescente de verão do ano
de 51.998, Tupã Angaturã fez a seguinte pergunta para o Awaju: Xe’ru, meu pai, me
disseram que um dia os mortos vão ressuscitar dos túmulos, quando Emanu, que
eles chamam de Jesus, voltar. Isso é verdade?
Awaju Poty respondeu: Xe Ray,
meu filho, não vamos entrar no mérito das crenças alheias, pois assim acreditam os
católicos e os evangélicos. Mas pra você o que lhe parece, acha que tem vida depois da
morte?

Angaturã respondeu, simplesmente: - Não sei.

Awaju então lhe disse: - Esta é a resposta que todos deveriam dar.
Agradeço muito pela tua resposta Tupã Angaturã e, fico muito feliz por ser teu pai e
estar junto a você nesta vida. Você possui a nobreza de Tupã. Para dar essa resposta é
necessário ter muita coragem. O que acontece é que as pessoas são muito apegadas à
vida e, não se apercebem da maravilha que é a morte, o momento do descanso do
guerreiro, o fim da história. E, criam então uma enormidade de justificativas para
enganarem-se a si próprio, malabarismo tão grande, quão grande seja o medo da
morte. Mas a morte é inexorável. Essas tentativas de fuga tornaram-se crenças, e
justificam uma porção de coisas. Muitas delas extremamente maléficas. Uns acham
que vêem de encarnações pretéritas, e se julgam superiores aos outros. Outros acham
que por pertencerem a determinadas seitas ou religiões estão salvos da morte, que
são escolhidos de Deus e que os demais são escória, não vendo que escória é quem
pensa assim, por seu próprio modo limitado de pensar. Enfim há uma gama enorme de
suposições que em última instância apenas servem para justificar a mediocridade dos
medíocres e fazê-los se sentirem superiores aos outros, não enxergando quase nada
além de seus próprios narizes e não ouvindo nada do que não querem saber,
refugiando-se na sua estreiteza de juízo. Ainda há os que se julgam fazendo um
caminho espiritual, seccionando o mundo em um universo sagrado e outro profano,
como se isso existisse de fato. Também tem os que se propõem a mortificações e a
abstinências, como o celibato, matando em si toda a manifestação da vida; esses são
os piores porque são os castradores. Enfim, há toda uma gama de covardes e de
medrosos que não conseguem e não querem ver essa verdade última, que você
tranquilamente expôs, na sua sabedoria e tranqüilidade de criança. Para este dia
bastam angústias deste dia, o dia de amanhã cuidará de si mesmo (cf. Mt 6:34). O
mais: “não sei”.

“Não sei” é Ñemi Guaxu, o Grande mistério, a parte perene de Ñamandu, a
Natureza de Todos os Mundos. Aprofundar no “não sei” é mergulhar no infinito mar
de Ñemi Guaxu em nós, nossa parte perene; entre as margens de ñemano, a morte.
O Guata Porã, ou seja, o caminho sagrado do xondaro, guerreiro, se inicia quando o
Kwimba’e, toma a decisão de atacar corajosamente os próprios medos, você ainda

é um menininho, Awa Kyrim, meu querido Kurumim, onde já brotam os rebentos do
futuro Xondaro.

terça-feira, 15 de maio de 2012

WY’A: A FELICIDADE


Cerro Uritorco - Capilla del Monte 

         Tupanju, em aty realizado em ara aguyje, tangua de Gua’a, ano 51.998, no Tekowa Pu’aka, fez uma pergunta muito importante para todo o nosso povo, dirigida ao Awaju; porque na resposta que o Awaju lhe deu, pela primeira vez foi abordada a origem do povo Ñandewa, ou seja, de nosso povo, bem como salientado o propósito do Ñande Reko como um caminho de felicidade em direção ao aguyje. Esta foi a pergunta do Tupanju:
          - Xe’ru, meu pai, eu queria saber um pouco mais sobre os meus ancestrais. Como eles eram?
          Sei que os pais do Tata eram caiçaras, e que a mãe do avô Nelson era tingui; e sei também que os pais da Mama eram italianos assim como o pai do avô Nelson e os pais da avó Geni; e que nós somos Ñandewa e praticamos o Ñande Reko. Você poderia me dizer um pouco mais sobre esse tema?
          Outra coisa que me deixa confuso, também, é o fato do Cabeza de Vaca ter achado que o nosso povo era Wiking; e o Orellana, que era Grego, e já li também que alguns acham que a origem de nosso povo é Fenícia. Que confusão é essa?
          A resposta do Awaju foi:
          Xe’ray, meu filho, você fez uma pergunta abrangente que me possibilitara relembrar e esclarecer coisas importantes para o nosso povo.
          Vou começar pela última pergunta, sobre as Ykamiabas. Quando nossas Xondaria kwere (guerreiras) atacaram o Orellana (1), das margens do rio Maranhom, ele achou que estava sendo dizimado por um grupo de guerreiras lendárias, chamadas na mitologia grega de Amazonas, porque não tinha outra referência para se apoiar no entendimento do que estava lhe acontecendo. E a partir daí o rio Maranhon passou a ser chamado de rio Amazonas.
          Quanto ao Cabeza de Vaca (2), aconteceu algo semelhante, a única referência que ele tinha de um povo semelhante ao nosso eram os Wikingos, como ele chamou, tribo navegante do mar do norte.
          A hipótese da origem Fenícia se dá, devido às inscrições deixadas por navegantes dessa nação antiga, no litoral brasileiro; na verdade os fenícios mantiveram comércio com o nosso povo. E ainda há outras hipóteses, baseadas nos textos hindus. E todas elas são verdadeiras, menos no que concerne à origem do nosso povo. Há outras suposições mais, mas não é o caso agora de comentá-las.
          Voltando ao inicio da tua pergunta. Os tingui, em guarani Xi’inguy, denominação dada por vestirem-se e adornarem-se de branco; e os Caiçaras, em guarani Ka’aijara, senhores das matas, são povos de origem cario, em guarani Kario. Os Kario do litoral brasileiro, após a invasão européia, no século XVI, miscigenaram com portugueses e passaram a ser designados como caiçaras. Os Xi’inguy, Kario do planalto, acabaram mais tarde se miscigenando com colonos italianos e alemães. Os Kario da Amazônia se miscigenaram com sertanejos vindos principalmente do Maranhão e do Ceará. Devido aos casamentos interetnicos a nação Kario (3) quase se extinguiu. Hoje ela renasce em nós.
          Então, resumidamente, o povo Kario veio para pindorama (Brasil e países limítrofes), a milhares de anos. São originários de Rani, região de Ka’ana’an (Canaã); por isso a denominação Guarani, ou seja, provenientes de Rani; pois gua é radical de desinência de lugar ou de contenção de algo em um lugar. Rani, que deve ser pronunciado com “r” brando, significa néctar, e também foi nome de uma princesa. Muitos confundem a palavra Guarani com a palavra Guarini. Rini, tini, significa audaz; daí Guarini significar guerreiro, e não ser uma corruptela da palavra Guarani. Ainda outras aproximações podem ser feitas, como com a palavra Gua’rendy, que significa receptáculo de luz, ou vindos da luz. Ou ainda Kwaray’i, ou seja, pequenos sois, ou filhos do sol nascente. Todas estas aproximações são interessantes, e não são coincidências, mas não dizem respeito à origem etimológica da palavra Guarani.
          Ñandewa, como você sabe, significa “dos nossos” e, refere-se aos guarani que aderiram às reformas, ou melhor, às boas novas, trazidas por Tomé, que em guarani dizemos Xume (4).
          Ñande Reko, como você, também, sabe, significa “nossa maneira de ser” e, refere-se ao nosso caminho de felicidade rumo ao aguyje. Felicidade, Felix em latim, ‘é ter fé, no que é licito’, ou seja, é ter os Kora (5) como mapa do caminho.
          Porém, digo para você que, todas essas informações são importantes apenas para conhecermos aspectos de nossa cultura, do porque somos assim. Não devem de maneira alguma servir como fonte de descriminação. Nunca devemos esquecer que nosso pai é o Sol, que nossa Mãe é a Terra, que nossa Avó é a Lua, e que todos os seres existentes são irmãos, filhos da mesma nobreza. Aonde houver enfermidade, devemos levar sanação. A enfermidade pode manifestar-se de muitas maneiras, mas a pior delas manifesta-se como baixa estima.
          Nestes meus 55 anos assisti a enfermidade da segregação, entre muitas outras, manifestar-se com ferocidade em nosso mundo. Por isso quando me perguntam se sou Guarani, respondo: Sou Guarani Kario, sou Caiçara, caboclo, caipira, ribeirinho, sertanejo, gaucho, criollo, sou o índio trazido da África e, o índio expatriado da Europa e que encontrou abrigo nesta terra de Pindorama. Mas também quero dizer quem eu não sou: Não sou o que tem vergonha de seu povo, o que explora e segrega seu irmão, o que semeou a discórdia e a enfermidade na terra. Disso tudo, posso falar com segurança, porque assisti essas coisas acontecerem aqui.
          Minha família veio do litoral do Paraná para Curitiba, a motivação dessa transferência foi a melhora de vida e também sem dúvida o espírito de aventura. E esse mesmo espírito fez com que fossem para o interior do Paraná, para a região dos Campos Gerais de Guarapuava.
          Então, nasci em Curitiba e com dois anos de idade estava em Guarapuava, uma cidade bem pequena. Meu pai era encarregado da educação nessa região que ia de Guarapuava até quase a fronteira com o Paraguai e a Argentina. Nesse tempo, ha mais de cinqüenta anos atrás, as cidades que hoje conhecemos não passavam de pequenos povoados que se formavam nas margens das picadas que iam sendo construídas. Essa terra toda que estava sendo ocupada pertenciam aos Guarani Missioneiros que foram dizimados pelos Bandeirantes. As pessoas que chegavam nesse primeiro momento  eram deserdados de outras terras e aventureiros. No principio as coisas aconteciam de maneira harmoniosa e tranqüila, iam se instalando os caboclos, os gaúchos e, os colonos; o convívio com os remanescentes Guarani era tranqüila, todos tinham um sentimento que os irmanava que era o da esperança na construção de uma vida digna. Nesses tempos eu tinha ainda menos de cinco anos e viajava com meu pai por todo esse interior. Posso dizer que os caminhos eram constituídos de picadas sinuosas que desviavam os acidentes naturais e também as grandes árvores. As florestas de araucária eram impressionantes, havia araucárias e imbuias que precisavam de dez homens para abraçá-las. Os rios eram imponentes, límpidos e repletos de espécies de peixes, rios maravilhosos como o Ivai, o Piquiri e o Iguaçú. Assistia meu pai instalar escolas e designar professores e acompanhar o desenvolver das coisas, e por sorte sempre me levava junto. Também assisti sua consideração por nossos irmãos Guarani Mbya, construindo escola e designando professores para a aldeia. Havia toda uma admiração pela luta dos Guarani que haviam enfrentado de maneira tão desigual a tirania das metrópoles. Os guarani eram admirados como homens valentes, havia um sentimento heróico e um respeito por sua luta inglória. 
                
          Espero ter respondido a contento as tuas perguntas, caso restem dúvidas, você pode voltar a me interrogar. Ñamandu Guata’gua Ñandekwerupe. Há’ewei.
          NOTAS:
Cabeza de Vaca: Álvar Núñez Cabeza de Vaca, navegante espanhol que esteve no litoral sul do Brasil em torno do ano de 1540.
 Orellana: Francisco de Orellana, navegante espanhol que esteve no rio Amazonas no ano de 1542.
Kario: O povo Kario recebeu muitas designações, tais como: Kariyo, Karijo, Ari, Kari, Karai, Karaiwa, Karaiba, Karaiwe, Karibe, Ara, Kara, Kar, Awa; e outros que se referiam a detalhes de sua maneira de ser ou de viver, como: Kito, Karioka, Kariona, Piratini, Xi’inguy (Xingones, Comexingones); entre outras. 
Xume: Tomé, Thomas, Dydimos Thomas. Era Irmão de Emanu (Jesus).
Kora: Leis de Ñamandu (nosso Manu). Refere-se às leis da Natureza e ao decálogo recebido por Moxe (Moisés).