ÑEMONGETA: DIÁLOGO
Neste texto respondo algumas
perguntas que recebi em meu blog, em entrevistas e palestras. Fiz uma escolha
segundo meu próprio critério, por falta de condições de responder conforme as
perguntas foram surgindo.
Por outro lado talvez a partir deste
texto possa responder as perguntas que vierem, em forma de diálogo, dando
prosseguimento as cinco primeiras que escolhi a priori, por ordem de chegada.
Vamos então as perguntas recebidas:
1.
Awaju, o que destacaria como mais importante para você, no seu trabalho de pesquisa
da cultura guarani?
R:
Nesta jornada de mais de duas décadas, o mais importante para mim foi o
encontro com Ñamandu, Deus; também a redescoberta de outra face de Kexu Krito,
o Ñamandu Miri, Yehetchua Netzari.
Quando
me foi pedido na Universidade de São Paulo um depoimento de vida, por ocasião
do “Encontro Internacional de História da Religião”, no ano passado (2013),
respondi: Dois aspectos de minha vida são mais importantes com relação a todos
os outros que me dizem respeito, são: a música, que me acompanha desde sempre,
iniciei meu estudo sistemático aos oito anos, porém desde que me lembro de mim
estou acompanhado da música; e a
espiritualidade. A espiritualidade teve um aspecto não resolvido até a
minha maturidade. Devido a outras influências, minha decisão religiosa foi
tardia e casual. Deu-se no ano de 1991 quando morava em Itanhaém, por ocasião
da minha pesquisa de mestrado em “Comunicação e Semiótica” na PUC/SP. Nas
imediações dessa cidade do litoral paulista há diversas comunidades Guarani.
Passei a frequentar essas comunidades e rezar no Opy (casa de reza), devido a
facilidade de relacionamento por falar a língua, gostar de tomar Ka’ayu
(chimarrão), fumar petym e praticar o Jeroky (dança) assim como de cantar os
mborai. Por questões afetivas tomei naquela ocasião a determinação de me
dedicar ao resgate e à pesquisa da música e da espiritualidade do meu povo
paterno, que é nativo do cone sul da América do Sul, já que minha mãe é de
origem Italiana. Hoje já somam 22 anos de dedicação exclusiva ao povo Guarani.
2. O que o Ñande
Reko representa para você?
R: O Ñande Reko,
a maneira de ser guarani, pauta a minha maneira de viver e, é o meu caminho de
realização espiritual.
Por
ocasião da saudação de Ara Ymã, equinócio de outono (2011), respondi a uma
pergunta semelhante da seguinte maneira: O Ñande Reko é a “postura de vida” do
Xondaro, do guerreiro e da Xondaria, da guerreira. É a “maneira de ser” dos
Kwaray’i, dos Guarani, ou seja, dos filhos e das filhas da luz. O Ñande Reko
também pode ser compreendido como o guata porã, caminho sagrado Guarani,
compreendendo por isso um caminho que pede para se ter bons procederes. Diria,
também, que o Ñande Reko é o caminho do coração. E que, na verdade, as boas
ações, os bons procederes higienizam, lavam o coração.
Quando
digo coração estou me referindo ao “Koratã”, ao coração da alma, que por sua
vez, tem enorme influência sobre o órgão análogo em nosso corpo físico, na
medida de que somos “um”.
A
higiene do coração pressupõe boas ações, mas, em um sentido amplo. Então, as
boas ações não incluem o encorajamento da traição e da malícia, nem os louvores
aos profetas da mídia, aos impostores, covardes e todos os servidores das
trevas. As boas ações não incluem a negligência odiosa nem a premeditada
dissimulação. As boas ações têm como objetivo o bem comum. Assim, o coração
adquire a solenidade (serenidade necessária) semelhante à consonância das
esferas. As boas ações, realmente se distinguem como conquistas do bem, não
pelas batalhas cruéis, mas pela coordenação com o objetivo. Porém é mais fácil
não pensar e aceitar um ligeiro desvio.
O
coração sabe onde está o desvio. Muitas infelicidades provêm do excesso de
confiança, que é imperdoável onde se guardam tesouros.
É
necessário reconhecer a luz como uma substância viva. Normalmente considera-se
este ensinamento como o mais infundado. Mas será possível compreender o fluir
da energia do coração como algo pertencente ao fosfórico? Ao contrário, o
coração sensível leva à renovação da consciência. Não dispensando por isso o
estudo dos textos.
O
estudo de textos contidos em muitos textos é significativo. Porém, aquele que
os estuda não deve tentar assimilar o ensinamento sob o mesmo estado de
espírito, porque é dessa maneira que nascem os numerosos pontos de vista.
Portanto, seria prudente mencionar em cada texto, pelo menos brevemente, o que
foi comunicado antes, para possibilitar uma assimilação sob o mesmo estado de
espírito. Os estados de espírito são fontes do nascimento de pontos de vista. O
contrário disso faz nascer o preconceito.
Aquele
que não vive solenemente não pode compreender o dano do preconceito. Este se
desenvolve não em grandes feitos, mas em cada ação diminuta. Assim, o escravo
do preconceito desperta já amaldiçoando um sonho que não se adapta às
limitações de seu ser. O dia inteiro ele condenará e amaldiçoará, porque não
terá as medidas do coração. E ele adormecerá condenando e visitará a esfera
correspondente à condenação. A indiferença também faz parte dessa esfera.
Na
indiferença criminosa, não se manifestam as reações benévolas, mas na
paciência. A paciência é uma tensão,
manifestada conscientemente, e uma oposição às trevas. É dessa tensão gerada pela oposição às trevas
que nascem as reações benévolas. A paciência é a fonte da graça e da leveza, e
nela repousa a força do Ñande Reko.
3. Há algumas
décadas paralelamente à atuação como pesquisador você vem atuando como pajé,
como isso se dá?
R: Meus textos
acadêmicos podem elucidar muito sobre esse povo maravilhoso, sobre a sua arte,
agricultura e religião. Porém na minha atuação como pajé, como você disse,
posso transmitir a vida dessa cultura em diálogo com as culturas do mundo.
4. Qual a relação
dos guarani com o cristianismo?
R: O cristianismo
faz parte da cultura guarani, de uma maneira mais intensa ou menos intensa
conforme a parcialidade. No caso do povo ñadewa’ete, a doutrina de Ñamandu
Miri, o Emanu, Ñamandu encarnado, acontece já no primeiro século da era cristã
e é trazida por Xume, Yuda Didimus Thomas. O registro dessa doutrina esta no
Mborai, canto, “Mborai Porã”, que pertence a tradição oral do povo Ñandewa.
Depois temos também o convívio com os Kexuitas, os jesuítas, e contemporaneamente
com os evangélicos e espíritas, que também exercem influência sobre os guarani,
muitos pesquisadores não querem enxergar essa realidade, mas ela é presente e
enriquecedora, seja pelo rechaço ou pela absorção. Não podemos ignorar que os
guarani convivem com o estranho em suas terras por mais de meio milênio.
5. Qual a tua
relação com o cristianismo?
R: O cristianismo
hoje permeia toda religiosidade planetária, seja pela afirmação seja pela
negação, toda religiosidade entrou em algum momento em dialogo com ele. A
passagem de Yehetchua Netzari marcou um antes e um depois dele. A minha
história de vida não é diferente: a família de meu pai é nativa do Paraná.
Embora sua prática religiosa não fosse tão presente em termos formais, possuía
uma religiosidade permeada pelo cristianismo, cumprindo os ritos básicos do
catolicismo como batismo e casamento e a frequência à igreja nos dias de festa,
principalmente na festa do Rocio, que é uma santidade de origem indígena, Yxapy
é o nome de rocio. Hoje a comunidade caiçara ignora a origem indígena de Rocio
e vive apenas o sincretismo.
Meu
avô tomava mate por hábito sem ter noção mais da sua origem. Os avós maternos de meu pai fumavam palheiro
ou cachimbo, também sem saber que esses dois elementos fazem parte da cerimônia
Guarani do aty, esse fenômeno é comum a muitas famílias nativas do sul do
Brasil; o sincretismo católico levou-os a esquecer do sentido de seus hábitos. Porém coisas fundamentais permaneceram como a
vida gregária e comunitária bem como uma sensação de suspeita para com a religiosidade
predominante na qual se sentem inseridos, porém, insatisfeitos.
Por
outro lado, a família da minha mãe é católica praticante, mas com uma
espiritualidade complementada em suas lacunas pelas crendices populares. A avó
materna da minha mãe veio de Veneza, mas aqui no Brasil filiou-se à irmandade
de São Benedito.
Na
minha infância tive formação católica e estudei em um colégio de freiras. Mas, a
partir da minha adolescência, comecei um trânsito por muitas influências. Fiz
Ioga, pratiquei “Tai tchi tchuan”, meditação Zen. Sempre me aprofundando com
afinco e extrema dedicação a minha busca espiritual.
O
meu reencontro com a cultura nativa não se deu pela religião e sim pela música,
tinha nessa época aproximadamente 34 anos quando me senti em casa novamente.
Integrei
em mim a cultura Guarani como relatei na canção “Guayrana”. Com os Guarani
aprendi outro cristianismo, se assim posso chamar; quando fiz o meu ykarai, a
cerimônia de recebimento de nome Ñandewa, nasci de novo.
Hoje
chamo Jesus de “Emanu, Kexu Krito ou Ñamandu mirim”; e o espírito sagrado, o
espírito santo de Ñeem Porã; e Deus de Ñamandu; os quatro tronos conforme a sua
direção são Tupã, Jakaira, Kwaray e Karai, e assim por diante. E essa não foi
apenas uma questão de mudança de nomes, mas de uma mudança de paradigma. Aos
quatro evangelhos se acrescentou mais um, o “Mborai porá” de Xume (Yuda Didymus Thomas), ou seja, no mínimo
tive um grande enriquecimento da minha concepção primária da doutrina de Yehetchua
Netzari.
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