terça-feira, 10 de julho de 2007

Buonissima Musica

BUONISSIMA MÚSICA

 

 

O padre Ripário diz que todos os domingos a missa celebra-se com boníssima musica.   Peças escolhidas da música francesa, italiana e alemã eram executadas de um modo tão "cuidado, artístico e agradável", que se não estivessem à vista os músicos acreditar-se-ia que as melhores orquestras da Europa estavam de passagem pelas Índias [1]."

O povo Guarani teve muito prazer em compartilhar a musica trazida pelo Kexuita, pelos padres da companhia de Jesus. Mas não somente a música, mas todas as artes que com ele, com o Kexuita, veio: a escultura, a pintura, o fabrico de instrumentos, a marcenaria, a agricultura e também a literatura que, diga-se de passagem, era literatura cristã.   Mas, por outro lado, o povo Guarani já conhecia os ensinamentos de Kexu Krito, de Jesus, quando o Kexuita aqui chegou. Os padres Cataldino e Maceta, Montoya e Mendoza, entre outros, ouviram isso dos Guarani: que Xume já lhes tinha ensinado o que eles estavam dizendo.   Manuel da Nóbrega confirma: "Dizem eles que São Tomé, a quem  chamam Zumé, passou por aqui. Isto lhes ficou dito de seus antepassados [2]".

Muitos historiadores afirmam que os Guarani, que não haviam se dobrado pelas armas, se deixaram dobrar pelas artes e principalmente pela música dos Jesuítas. Lugon, parafraseando Charlevoix conta que "os Jesuítas , ao navegarem pelos rios, aperceberam-se de que quando, para matarem santamente (sic) o tédio, cantavam seus cânticos espirituais, bandos (sic) de índios acorriam para ouvi-los e pareciam ter nisso um gosto especial [3]".

Certamente os Guarani ficaram surpresos quando se depararam com os padres fazendo musica. Afinal somente tinham visto Juruá (europeus) que não eram amansados, que eram sanguinários, os jesuítas foram uma grata surpresa. Os Jesuítas estavam fazendo uma coisa que era de hábito para o Guarani, pegar o mimby, flauta de bico, de palheta ou de bocal e ir tocar junto ao rio, para sentir o espírito do rio, porque tocando mimby para o rio se entra em comunhão com ele, pode-se sentir que ele não é somente água, e que ele pode se revelar como ser vivo que é. Então entra-se em comunhão com a própria fonte de   toda a música, com a própria fonte da beleza e da vida.

Os Guarani fizeram música com o Kexuita e com o Juruá, mas nunca deixaram de fazer a sua música, e mesmo fazendo a musica do Juruá, nunca deixaram  de fazer da sua maneira, Ñande Reko, da maneira de ser Guarani, e só por isso a musica Guarani ainda existe hoje. Os Guarani sempre tiveram claro que Diferenciar não é separar. Que a consciência, Ñee, é uma, mas que ela é fluida nas águas das cachoeiras, leve nas azas dos pássaros, que ela florece nas árvores na primavera e frui de si na música dos mbaekwaa, dos sábios. E que o rosto de um filho que morre, para uma mãe, não é a imagem da fumaça que se esvai do petyngua, do cachimbo ritual que é fumado no rito de cremação dos mortos. É diferente, são planos diferentes de ser. E é preciso reconhecer a beleza do Ser, como a variedade das musicas, na variedade das manifestações do Ñee, respeitando esta variedade. A unidade da nossa espécie não é a uniformidade.

Em 1637, o padre Ripário escreveu ao provincial de Milão: "Muitos já sabem muito bem compor música. Podem rivalizar com famosos músicos da Europa. Usam uma grande variedade de instrumentos [4]".

Quando dois padres franceses, Hénard , de Toul, e Noel Berthold, de Lyon, chegaram às missões em 1628, os neófitos executaram para eles "bailados com uma música a duas vozes, ao bom gosto   da França [5]".

Então os Guarani tocaram musica sacra para os Jesuítas, Francesa para os Franceses, Bailados para os leigos e assim por diante. O que pode ser apreciado nos relatos sobre a música e os concertos que realizaram os Guarani, na Republica Livre e em suas expedições pelas vizinhanças e pela Europa é que havia nos Guarani   o desejo de se realizar com o outro, com esse povo extranho que tinha tomado conta de todas as terras à sua volta.

Portanto, houve o desejo de fazer música com o outro para se realizar, mas também o desejo do outro por ele mesmo. O povo Guarani amou a música do outro em sua diferença e pode cantar a sua alteridade. Mas faltou tanto para os Jesuítas quanto para os iluministas que festejaram o "bom selvagem" entendimento para compreender a diferença, outras possibilidades. Porque apenas quando desejamos o outro por ele mesmo, seja através da sua arte, ou da sua maneira de viver (religião) é que o desejo se torna amor.

E os Guarani desejaram também ser desejados, e este desejo que em muitos momentos se tornou ferida, está para lembrar, para ecoar para sempre nas matas do Sul da América do Sul, de que não podemos ser inteiros sozinhos. Que só podemos estar inteiros na relação com o outro.

Os Guarani aprenderam o que o Juruá tinha de melhor, que era a sua arte,e em especial a sua música. Mas o Juruá até hoje não aprendeu o que o Guarani tinha de melhor para lhe ensinar que é a sua maneira de ser, o Ñande Reko. E até hoje essa ferida esta aberta em forma de erosão no solo, de desmatamento, de sujeira (lixo e toda a poluição), uma pena que o Juruá não quis aprender a viver nesta terra, afinal, ensinaram para o guarani coisas tão bonitas, uma pena que não souberam aprender com a diferença e com a alteridade. E pior que tudo, os Juruá que surpreenderam os Guarani por serem amansados, foram embora e os Juruá sanguinários voltaram para confrontar, e em quantidade e em ferocidade muito aumentada, e não suportaram ver um povo   que tinha o seu ser inteiro, E foi perdida uma comunhão que as artes, que a música tinha conseguido.

Hoje há uma distância, e um desconhecimento mútuo, até mesmo uma rejeição. Mas essa distância não precisa ser uma separação, porque ela é inclusive necessária para que haja uma comunhão, para que seja possível uma comunhão, uma relação. Ou seja, só pode ser feliz o encontro de duas liberdades, de duas autonomias. Porque, o encontro de dois povos, de duas musicas ou de duas pessoas não pode ser o encontro de duas metades, mas o encontro de dois seres inteiros.

Em Guarani a saudação Ianai, que se traduz por "Deus está em nós", significa literalmente "estar inteiro".



[1] Welt-Bott, Parte 24, número 510.

[2] Informações das  Terras do Brasil, pág. 154.

[3] Lugon,C. A República Comunista Cristã Dos Guaranis. Pág. 143.

[4] Carta publicada em Pastells, tomo I, pág. 543.

[5] Citado por Muratori, págs 97 e 98.

3 comentários:

juliana disse...

Lembrei da arte e como nos envolvemos e admiramos algo que nos apresenta como inteiro independente dos conceitos de beleza, dos sensos comuns ou das representações...

A coisa deve existir inteiramente desde seu princípio e o princípio revela-se na coisa.

A arte é uma demonstração do desejo humano de comunhão, mantendo-se as distâncias necessárias.

awajupoty disse...

Juliana, agradecido pela visita e me desculpe pela demora em responder. Sem duvida a arte é uma expressão do desejo humano de comunhão, uma comunhão que se dá atravez do universo lúdico, e isso não se deixa dominar pelos meios, ou seja: conceitos, formas, gêneros. A arte é um pretexto para a nossa expressão e comunicalçao, em última instância, consigo mesmo.

Unknown disse...

oi awaju,

Meu nome è Lucas, sou amigo do Julio uruguaio(Karai).
gostei do blog, e uma proposta interesantisima para a gente conhece outras organizaÇoes da vida, da arte.Gracias!
estou fazendo um trabalho para faculdade, sobre estetica, e queria mostrar como o mundo ocidental deu por universales e absolutas muitras coisas.
voce tem como me ajudar com alguma informacao?do que eu vou falar è: a dimensao estetica do povo guarani, como que a tradiçao guarani entende a arte, a funçao da mesma dentro de uma sociedade com outros pilares simbolicos.

si voce puder mandar algum documento, agradecere muito.

Lucas