Participei,
nesta quarta-feira, de uma mesa redonda no plenário da Câmara Municipal de
Curitiba, promovido pela FAO, a convite do vereador Jorge Bernardi. Enquanto
meus colegas de mesa faziam suas explanações abordando a questão da fome, dos
insumos nocivos e das transgenias de morango com vagalume para que o morango
tenha essa cor brilhante e de batata com mosca para que ela fique crocante e,
outras coisas muito alarmantes, meu espírito foi até os Ma’ety que brotaram
lindos neste Ara Poty.
Senti uma grande alegria vendo as qualidades
do Awaxy (milho), dos Komanda (feijões), das raízes, dos legumes, das frutas
tão puras e intocadas, e pensei tudo isso em relação ao que estava ouvindo.
Então me entristeci principalmente porque não somos sempre compreendidos por
não produzir para a venda ou por não partilhar nossas sementes e mudas com
estranhos.
Hoje,
abrimos nossos conhecimentos para o mundo porque isso agora é possível, a bem
pouco tempo, até 1897 a inquisição ainda matava os Mbaekwa’a (os sábios). Até bem recentemente, década de setenta do
nosso século, durante a ditadura militar, o serviço de repressão prendia e
desaparecia com os jovens que buscavam defender sua autonomia, que buscavam
defender a terra da devastação que era feita por maquinários que agiam sobre o
comando de pessoas sem nenhum critério ou senso crítico das suas ações. Povos
quase inteiros como os Panara, gigantes de mais de dois metros e de força
descomunal, foram quase extintos, atacados por aviões militares que lançavam covardemente
bombas de napalm.
As
sementes e os demais vegetais, por outro lado, ainda não podemos partilhar.
Somente poderemos partilhar quando a humanidade não mais mexer geneticamente em
seus seres, não promover mais hibridações e transgenias e não mais agredir o
planeta com insumos nocivos. Quando isso acontecer poderemos então partilhar as
sementes.
Nada justifica a fome no mundo, porque alimentos sobram
todos os dias. Toneladas e toneladas de alimentos são postos no lixo todos os
dias pelas grandes organizações. O que ocorre é que o alimento não esta
disponível para todos. E usam essa justificativa para gastarem fortunas em
pesquisas que alteram os alimentos para se obter maior produtividade. Quando o
problema não esta na produtividade e sim na distribuição.
A freqüência de anomalias que vem ocorrendo em vários
setores da atuação humana nos anos
recentes foge ao senso comum. A ansiedade e as preocupações da humanidade
dominada pelo sistema capitalista ou socialista que esta ruindo acaba em medos
reais, temores fundamentados. Para sair desse circuito doentio é necessário que
se volte para a natureza e para a auto-suficiência e gestão, o que significa
voltar para a terra e para a agricultura, sem rancores ou remorsos, por isso,
antes de qualquer atitude precipitada, devemos medir nossas ações e também perdoar sem culpa e não julgar ninguém.
Importante é ter em mente que a agricultura que
praticamos agrega o conhecimento que vem desde os tempos remotos às novas
idéias e à experiência obtida com o enriquecimento das colheitas por meio da
emanação do Ñeem Porã, a emanação do espírito sagrado através do pyte e da
energia radiante que emitimos do mbyte de Kwaray, nosso sol orgânico, nosso tata
porã orgânico.
Ma’ety, a mandala de plantio teve seu último desenho
fixado por Xume. E a recomendação fundamental que nos foi deixada é a de que
“antes de mais nada para que tenhamos uma agricultura de excelência comecemos
por agradecer Ywy retã, a mãe terra por nos deixar cultivar sobre o seu divino
corpo, agradecer a Kwaray, nosso divino pai por dar possibilidade de vida aos
irmãos que conosco compartilham esta maravilhosa nave mãe, enfim sintonizar com
a gratidão é o primeiro passo na lida com a agricultura”. A gratidão pode ser
desenvolvida e absorvida cada vez mais na medida em que for praticada em atos e
palavras ao invés de ser contida e restrita aos pensamentos e devaneios. Não é
apenas a quantidade de alimento que importa na agricultura, mas, a qualidade
espiritual do seu resultado final.
Ao mesmo tempo em que cultivamos as quatro cores básicas
do awaxy e suas infinitas derivações, também a humanidade das quatro cores esta
sendo lapidada para brilhar ao sol. Juntos, os tata porã de cada um, formam um
tata porã guaxu, uma enorme tocha que ilumina o mundo.
A luz de Kwaray (sol) permite que todos os seres se
desenvolvam; assim também é a luz de Ñamandu (Deus). Com uma diferença e uma
semelhança: as nuvens podem cobrir o sol físico, mas não podem cobrir o sol
espiritual. Apenas os humanos podem negar para si a luz de Ñamandu, não se
expondo aos seus raios de Kwa’a (sabedoria) e Mborayu (amor). Recebemos essa
radiância (ju) quando agradecemos a tudo e qualquer acontecimento a todo
instante em toda a sua complementaridade e totalidade.
E ,conversar com os elementos, dialogar com nossos
companheiros de jornada, não é loucura dialogar com as plantas , com os
animais, com os minerais. Loucura é se fechar ao diálogo com a vida.
Quanto a incompreensão, tudo bem, já em 1528, Luiz
Ramires depois de ser alimentado e ter boa hospedagem, escreveu ao seu rei
dizendo: “Aqui entre nosotros está otra generación que son nuestros amigos, los
cuales se llamam guaranis por otro nombre chandris: estos andan dellamados por
esta tierra, y por otras muchas, como corsários a causa de ser enemigos de
todas estotras naciones ... son gente mui trahidora ... estos señoream gran
parte de la India y confinan com los que habitan La Sierra. Estos traen mucho metal
de oro e plata em muchas planchas y orejeras com que cortan La montaña para
sembrar”... e segue em suas detratações.
Porém o que mais me chama a atenção é o detalhe do metal
com os quais eram confeccionados os instrumentos agrícolas: “ouro e prata”. Não
poderia haver desígnio mais nobre para esses dois metais, porque é da
agricultura, a arte fundamental da vida, que dependem todas as outras artes.
Sem uma boa agricultura não temos como ter uma boa culinária. E, sem uma boa
alimentação, fracos e doentes não seria possível termos qualquer outra arte. E
hoje buscamos ter o telhado sem ter os suportes, por isso nossa civilização
esta ruindo. A esperança é que sobre esse escombro, sobre esse adubo, possa
surgir uma nova humanidade, a quinta humanidade feita de awaxy ete. Há’ewei!!!
2 comentários:
Que lindo texto, além de promover um reflexão sobre o capitalismo que explora o homem e a terra, também nos possibilitou acessar a riqueza da cultura guarani no trato com a mãe terra. Preservar as sementes é também preservar a vida na terra. A esperança, se renova!
Que bonito tudo isso! Obrigada por compartilhar!
Postar um comentário