sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

 

CANTO EM GUARANI

     Eu nasci em uma região que só se tornou Brasil no século XX, me sinto brasileiro, mas mantenho a memória do Guayra, embora todas as tentativas de apagamento, mantenho o Nhande Reko que nos foi deixado por Xume e sou falante do Aywu Porã (dialeto Guarani Nhandewa), possuímos nossos costumes, nossa culinária, nossos vegetais e cereais, temos uma maneira de ser e de viver própria. Originalmente apenas os que seguiam a reforma de Xume eram autodenominados Nhandewa (dos nossos), hoje outros grupos se autodenominam Nhandewa, por isso nos autodenominamos hoje IanaiwePyau, cumprindo uma profecia de Xume que está na estrofe 25 do Mborai Porã. Nos declaramos nos censos como “brancos”, porque não somos tutelados pelo Estado, possuímos propriedades (Tekowa) particulares e porque não temos tez mongólica, somos indígenas brancos, ou seja, estamos fora do censo; isso também acontece com os Charrua, são negros, indígenas negros, ou seja, também estão fora do censo. Porém somos um povo que habita o Brasil, o Uruguai e a Argentina, da forma “o mais invisível possível”. Gostaríamos que não houvesse mais fronteiras, pois sentimos o planeta como nosso território e a humanidade como nosso povo.

            Lembrando um pouco a história do Guayra:

A ocupação brasileira da região do Guayrá se afirmou em 1870 com o final da Guerra da Tríplice Aliança. Mais tarde, foi nomeado de "Departamento De Guaira , uma pequena província localizada no centro leste do Paraguai, para onde foi transferida Villa Rica do Espírito Santo, em um território que não estava incluído no Guayrá original. O Guayra original foi anexado ao Brasil como Quinta Comarca de São Paulo, depois de 1853 se tornou o estado (então província) do Paraná. A consolidação brasileira não se concretizou completamente até as primeiras décadas do século XX, quando os limites atuais foram estabelecidos com a Argentina através da "Questão de Palmas" ou "das Missões" e quando terminou a Guerra do Contestado.

     O Guayra constituiu-se na primeira República da América, e sempre foi uma região autônoma até a sua anexação feita por São Paulo. Aqui se falava o “Aywu Porã”, Guarani antigo. Quando da invasão Paulista, o povo desta região, Ianaiwe (missioneiros), migraram para o sul, indo encontrar-se com o grupamento de Owerawa Karai e com ele dirigindo-se em refúgio no Paraguai.

É preciso reconhecer que diversas construções simbólicas que vigoram nos países do Sul da América do Sul são modelos mentais herdados dos colonizadores, pois entendem a diversidade cultural apenas como uma soma de territórios, de etnias e de comunidades. No entanto, há outras formas, bem mais abertas, complexas e singulares, que são frutos da simbiose das diferentes contribuições culturais e que incluem a cosmovisão da realidade. É necessário para se ter uma visão mais abrangente levar em consideração “perdas, seleções, redescobrimentos e incorporações” (RAMA, 1984, p. 47). Deste ponto de vista, as relações se dão de forma concomitante e misturam-se no âmbito de uma reestruturação geral do sistema cultural. O escritor cubano Alejo Carpentier chamou esse fenômeno de real maravilhoso (CARPENTIER, 1993, p. 31). Por isso, é fundamental a elaboração de um novo discurso no qual as velhas e novas representações reconheçam as origens mais profundas dos seus mitos, símbolos, hábitos e costumes. Nesse sentido, é preciso acrescentar novos contornos à pesquisa científica, assim como à criação artística e cultural. Para intensificar o diálogo com outros movimentos culturais planetários, também será importante compreender que tanto o “nós” como os “outros” constituem um processo cultural, que, “não é uma história do passado, embora o passado esteja nela (…), é uma história do futuro, de uma coisa que está tentando acontecer, uma transformação da consciência, da cultura, da sociedade e das instituições como o mundo jamais experimentou” (HOCK, 2006, p. 15). Esta percepção depende de um olhar que mergulhe no passado mais distante sem ficar preso a ele, que represente as culturas urbanas e que faça as suas conexões com as culturas rurais, e/ou das florestas, e vice-versa (ALMEIDA, 2015, s/p). Atualmente, esses diálogos estão ocorrendo de forma presencial e também com a utilização de ferramentas da área das tecnologias da informação e comunicação. Deste modo, algumas expressões culturais regionais já estão sendo representadas com características complexas e universais, libertando-se de concepções maniqueístas e, ao mesmo tempo, extrapolando as visões que estavam presas ao espaço geográfico, à xenofobia, ao etnocentrismo e ao passado. 

A diversidade cultural e a transculturação que se realizou no Cone Sul da América do Sul somente serão reconhecidas quando as ciências, juntamente com os mitos e os saberes populares, forem consideradas em suas objetividades e subjetividades. Para isso ocorrer, será necessário, por exemplo, reconhecer que as culturas do Pampa e das matas (da região do Rio da Prata) estão vivas e unem simbolicamente os habitantes de territórios do Brasil, do Uruguai e da Argentina, que a cultura dos povos missioneiros e guaranis mantêm a memória de brasileiros, uruguaios, argentinos, paraguaios e bolivianos. Há séculos diversas culturas transfronteiriças compartilham símbolos, saberes, hábitos e costumes entre si, como é o caso da erva-mate (Ilex paraguariensis), que aproxima os moradores do Pampa, das matas e das Missões Jesuíticas Guaranis. Porém, não podemos ignorar que nessas regiões também se instalaram frigoríficos, agroindústrias, mineradoras, hidrelétricas e freeshops, com capital de empresas importadoras/exportadoras transnacionais.

Algumas concepções não conseguem traduzir o interculturalismo (hibridismo cultural) que está explícito nessas regiões do planeta e que já dialoga com o mundo globalizado. Por seu lado, as comunidades transfronteiriças, sem ignorar as diferenças legais dos países, criaram uma constelação de conceitos e de sentimentos de pertencimento – quase esquizofrênicos – que são mais amplos do que uma cultura nacionalista ou etnocêntrica. Em função destas complexidades experimentadas e/ou vividas, as comunidades das fronteiras da América do Sul podem contribuir para realizar o diálogo necessário entre as mitologias, as ciências e as artes.

Eu canto em Guarani, português e espanhol, porque essas são as minhas línguas. Meus mitos podem coincidir com os mitos guaranis, porém eles me conectam com a mitologia universal, humana, que pulsa em todas as psiquês, porque não as ignoro.

Mais do que ser Ianaiwe, sou humano por nascimento.  
As línguas oficiais dos países, por exemplo, não representam um entrave aos sentimentos de pertencimento, pois nelas existe uma floresta de valores simbólicos e mensagens iconográficas comuns que definem e ampliam a abrangência dos territórios de integração cultural. Inclusive, em algumas regiões, elas se misturam formando os portunhóis, os guaranhóis y otras mezclas. Se boa parte da academia e dos povos que vivem confinados nas reservas, fruto do apartheid que segrega as populações indígenas, ainda se debate com a compreensão desses mitos e dos saberes populares, é porque ela está presa aos saberes técnicos aprendidos nos livros, ou pior, no caso dos indígenas, por sequer ter conhecimento de sua história devido às muitas rupturas sofridas, e não na práxis (reflexão prática, crítica, histórica e sensível) educadora e libertadora (ALMEIDA, 2015, s/p). Oque confirma que no fundo, o essencial nas relações entre autoridades e liberdades é a reinvenção do ser humano no aprendizado da sua autonomia (FREIRE, 1996, p. 105).

O Brasil faz fronteira com a maioria dos países do continente sul-americano e, por isso mesmo, assume um papel estratégico para a integração. No entanto, a maioria dos gestores públicos brasileiros costuma citar apenas o artigo 20 da Constituição do Brasil, que trata da “segurança nacional”, mas não menciona o artigo 4º, que afirma, no seu parágrafo único, que “a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Seria preciso também lembrar que a Constituição brasileira, no seu parágrafo 3º do artigo 215, destaca os direitos culturais regionais ao afirmar que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Essa lei estabelece ainda, graças à Emenda Constitucional nº 48, incluída em 2005, que o Plano Nacional de Cultura terá uma duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do país e à integração das ações do poder público, com a valorização da diversidade étnica e regional.

Enquanto essa dimensão da cultura não for assimilada, os beneficiários da exploração de recursos naturais nessas regiões continuam sendo as grandes corporações transnacionais. Uma proposta brasileira feita em agosto de 2000, durante a Reunião de Presidentes da América do Sul, em Brasília, gerou o plano de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana e acelerou ainda mais a exploração e a exportação de produtos e matéria-prima do continente. O velho sonho de integração latino-americana assumiu novas roupagens, e agora está travestido por alianças econômicas e comerciais transnacionais e multinacionais.
É importante lembrar que o Brasil se tornou signatário da Convenção da UNESCO sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais , de 2005; para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, de 2003; para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, e também participou da Conferência intergovernamental sobre políticas culturais para o desenvolvimento, em 1998, e da Convenção de Haya, em 1954.

No entanto, apesar desses avanços teóricos, a maioria dos planos, projetos e programas ficou restrita às demandas de infraestrutura (estradas, pontes, hidrelétricas etc.), economia (comércio) e segurança nacional (tráfico e contrabando), ignorando os aspectos da cultura e da arte. 
Em 2010, um grupo de militantes culturais articulou uma reunião com o Ministério da Cultura do Brasil – MinC, na fronteira Santana do Livramento (Brasil) e Rivera (Uruguai), na qual também participaram representantes das prefeituras, intendências e alcaldias dos municípios da fronteira Brasil-Uruguai, com o objetivo de compartilhar experiências e organizar ações conjuntas. No dia 30 de julho daquele ano foi entregue a Carta da Fronteira aos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e José Pepe Mujica. 

A carta reconhece que “a histórica convivência entre ambos os povos da fronteira Brasil-Uruguai produziu um patrimônio cultural com identidade própria” e que “a fronteira constitui um corredor, com suas singularidades e diversidade ambiental e cultural”. Afirma, ainda, que “a dimensão cultural é um dos eixos integradores para o desenvolvimento sustentável, pois visa a promoção da autoestima e do sentimento de pertencimento, o reconhecimento e valorização do patrimônio histórico e cultural das comunidades fronteiriças” e que “é importante e urgente fortalecer as ações culturais das comunidades da fronteira, bem como ampliar e democratizar o acesso aos serviços e bens materiais e imateriais, às políticas e ações culturais, e fortalecer a economia da cultura, as capacidades e os saberes locais”. Existe um nítido sentimento de pertencimento cultural na região do Pampa, nas Missões Guarani Jesuíticas e na Bacia do Rio Paraná. Esse é um embrião de reconhecimento, talvez um rizoma como o entende Deleuze, na medida que não somos nem uma coisa nem outra, mas uma coisa e outra.

Segundo Deleuze, “um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e… e… e…” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36). Este tipo de planejamento participativo não se orientou por uma lógica evolutiva e sim por devires. Dentre estes, devires esquecidos, bloqueados, alguns estavam enterrados, dados como mortos.

Por isso tudo eu canto em Guarani, português e espanhol.

Referências

ALMEIDA, Ricardo. Os outros espelhos enterrados. In: Sul21. [Publicação digital]. 2015. Disponível em: https://www.sul21.com.br/jornal/os-outros-espelhos-enterrados-por-ricardo-almeida>. Acesso em: 12 dez. 2017.

BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Proposta de Reestruturação do Plano de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira – PDFF. Rio de Janeiro: Grupo Retis – UFRJ. IV, 2005.

CARPENTIER, Alejo. Obras escogidas. Santiago de Chile: Editorial Andres Bello, 1993.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 1 v.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.

HOCK, Dee. Nascimento da era caórdica. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. 1. ed. México: Siglo XXI, 1984.