segunda-feira, 25 de junho de 2007

Mborayu - O Espírito que nos Une

Awaju Poty

 

 

 

 

 

 

MBORAYU

O ESPÍRITO QUE NOS UNE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CURITIBA

2006

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................    4

1.1 NO QUE CONSISTE ESTE ESTUDO .......................................................    4

1.2 PARA COMPREENDER ESTAS NARRATIVAS .......................................    4

2 ARA POTY ATY'GUY – CELEBRANDO A PRIMAVERA .............................   7

2.1 APRESENTAÇÃO .....................................................................................    7

2.2 TEXTO: ARA POTY ATY'GUY ..................................................................    8

2.3 COMENTÁRIO ..........................................................................................   22

3 KARAI POTY OMOMBEU – KARAI POTY DISSE ......................................   24

3.1 APRESENTAÇÃO ....................................................................................   24

3.2 TEXTO KARAI POTY OMOMBEU ...........................................................   25

3.2.1 ARA PETEY ..........................................................................................   25

3.2.2 ARA MOKOY ........................................................................................    26

3.2.3 ARA MBOAPY .......................................................................................   27

3.2.4 ARA YRUNDY .......................................................................................   29

3.2.5 ARA PETEY'PO .....................................................................................   30

3.2.6 ARA MBOAPY MEME ...........................................................................   31

3.3 COMENTÁRIO .........................................................................................    33

4 PABLO WERA OPORAI'GUY- SEGUNDO CANTO DO AYWU RAPYTA ..  36

4.1 APRESENTAÇÃO ....................................................................................   36

4.2 TEXTO: PABLO WERA OMOMBEU ........................................................   38

4.3 TRADUÇÃO: O SEGUNDO CANTO DAS FALAS SAGRADAS ..............   44

4.4 COMENTÁRIO ..........................................................................................   47

5 CONCLUINDO .............................................................................................   48

5.1 JEROKY: A DANÇA SAGRADA ...............................................................   48

5.2 OPA ATY: FINALIZAÇÃO .........................................................................   50

6 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................   51

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

1.1 NO QUE CONSISTE ESTE ESTUDO

Esta monografia consiste da transcrição do Aywu, a parte falada de um aty, de uma cerimônia Guarani, e do seu desdobramento em outros dois textos citados no Aywu, o Aywu Rapyta, de Pablo Wera e o Mokoy Po Rire Mboapy Ara de Karai Poty.  

Primeiramente faço uma apresentação dos participantes do Aty e a transcrição do Aywu seguido de um comentário.

Faço o mesmo com os textos que são citados. Do Aywu Rapyta faço junto com a Ñandexy'i Yxapy Rendy uma proposta de tradução.

Solicitei aos ñanderu'i e as ñandexy'i que falassem em português ou em espanhol durante o aty, para facilitar o entendimento da nossa fala para as pessoas que não sabem falar Guarani.

 

1.2 PARA COMPREENDER ESTAS NARRATIVAS

            As narrativas que aqui serão apresentadas foram produzidas por um povo. E um povo é formado por indivíduos. Os povos possuem diferenças entre si, e os indivíduos também. Mas é claro que possuem também identidades e semelhanças suficientes para caracterizá-los.

            Normalmente, mas de forma anormal, e aqui acusando uma anormalidade, quando se fala dos povos antigos da América, chamamos os indivíduos desses povos, de índio, de maneira generalizada, e não pelo nome de seus povos. Então, seria bom chamá-los pelos nomes de seus povos e genericamente como povos antigos ou nativos de Pindo retama.

            Bom daí vem a questão do estereotipo. A maioria das pessoas quando fala de índio, pensa nos índios sanguinários que Hollywood criou ou nos Xavantes que os documentários europeus e norte-americanos estandardizaram.

            No filme "The Mission", onde Robert de Niro faz o papel de um jesuíta, os Guarani são representados por Xavantes. Uma diferença de quase 50 graus centígrados separa a cultura Guarani da Xavante. Na região Guarani a temperatura pode cair para menos de 5 graus abaixo de zero, ao passo que na região dos Xavantes a temperatura pode subir para mais de 45 graus acima de zero. Não dá para pensar que ambos os povos tivessem as mesmas vestimentas e nem o mesmo sistema alimentar, é claro.

            Por outro lado temos os índios estudados pelos alunos de primeiro e segundo grau nas redes de ensino. O índio, porque é o índio que é apresentado, é colocado como um verdadeiro tabula rasa   e, sua cultura como um absoluto atraso e não como um estilo de vida auto-sustentável eco-teológico,   com uma vida mito-poética, comunitária e com excelente índice de sanidade; salvo nos casos em que estão submetidos à opressão da cultura envolvente. Mas nada disso é refletido, apenas apresenta-se o índio como um ser atrasado.

            Dá-se destaque para o estudo das culturas andinas e mexicanas. Culturas que eram predatórias, imperialistas e centralizadoras, ou seja, semelhantes à cultura européia. É fácil compreendê-las pois algumas coisas já eram conhecidas da sua maneira de viver, pelo sistema do colonizador.

            Por outro lado temos os antropólogos e os etnólogos que viram um índio de origem mongólica, escuro, baixinho, infância da humanidade, e até hoje apóiam o apartheid, para não perder os seus objetos de estudo, querendo mantê-los presos, como ratos de laboratório, nas reserva.

            A verdade é que haviam povos muito escuros e de cabelos cacheados como os Charrua, e brancos, ou melhor, dourados ou  bronzeados como os Karai (Karió, Karaiwe, Karijo); pequenininhos e engraçadinhos como os saterê mauê e gigantes de bem mais de 2 metros de altura como os Paranã. Ou seja, uma grande diversidade que não cabe nos esquemas e nas estruturas dos sistemas criados pelos acadêmicos.

            O povo Guarani Ñandewa, não confundir com os Xiripa, nem com os Kaiowa, nem com os Mbya e nem com os Apapokuwa ou os Xiriguano e muito menos  com os Tupi ou os Karai viveram em uma República Livre até o século XIX, em pacto com o jesuítas, e embora eles não sejam nenhum desses povos citados, são o resultado da simbiose desses povos todos e de comunidades vindas da Europa, principalmente de judeus sepharades que a eles se aliaram através do regime de cunhadasgo.

            Da comunidade nativa a predominante creio que foi a Karai (Karijo). Desse amálgama resultou o povo Ñandewa-Guarani. Que hoje possui uma identidade muito própria e uma existência que pede respeito, e uma voz que pede para ser ouvida. Sinto que entre os descendentes dos colonizadores somos vistos como estrangeiros. E entre os Mbya e outras parcialidades Guarani que estão mais marginalizadas somos vistos como os que têm obrigação de ajudá-los e ao mesmo tempo como os que não pertencem ao seu povo. E nós pertencemos às comunidades civis nos países onde nascemos na América Latina e somos Guarani e queremos colaborar e colaboramos com ambos os segmentos. Mas, antes de mais nada, somos filhos e filhas da Mãe Terra, de Ñandexy'ywy'retã e nos sentimos irmanados com todos os povos do mundo. Mas também queremos ser reconhecidos. E amar e ser amados. E nesse tom falam as vozes Ñandewa, de Ñanderu'i , ou seja, de sacerdotes e de Ñandexy'i, ou seja, de sacerdotisas Guarani que se manifestam nas narrativas que apresento nos textos a seguir.

  

2 ARA POTY ATY'GUY – CELEBRANDO A PRIMAVERA

2.1 APRESENTAÇÃO

O primeiro texto oral, Ara Poty Aty'guy é o relato de um aty, cerimônia Guarani. Para ele foram convidados sete paje, três ñanderu'i e quatro ñandexy'i, dois ñanderu'i do Uruguai e um do Brasil, e duas ñandexy'i do Uruguai e duas do Brasil. O aty foi realizado no Opy, casa de reza, do Tekowa Ywoty Renda, em Borda do Campo, na Serra do Mar , junto a montanha do Anhangawa, no Paraná. O aty foi conduzido por mim, Karai Awaju Poty, anfitrião desse encontro.

            Escolhi para o aywu, para o diálogo-meditação, deste aty o Segundo Canto do Aywu Rapyta de Pablo Wera. Introduzi a temática executando esse Mborai, canto tradicional, durante o momento do pyte. O relato que segue, do aty, foi transcrito pela ñandexy'i Yxapy Rendy.

 

2.2 TEXTO: ARA POTY ATY'GUY

            Por ocasião do Equinócio de Primavera, Ara Poty, se reuniram em Aty [1], no Tekowa [2] Ywoty Renda o paje Awaju Poty com a Ñandexy'i Jaxy Rendy, de Maldonado, Uruguai; com o Ñanderu'i Karai Tatawa de Aiguá, Uruguai; Ñandexy'i Ñeã Karai, do Tekowa Anhangawa, da Serra do Mar, Paraná; Ñanderu'i Karai Tupã, da Kamby'ija, Uruguai; Ñandexy'i Krexu Rete, do Tekowa Guyunuxa, Montevidéo, Uruguai; do Ñanderu'i Tataendy Ñeery, do Tekowa Tinguy, da região de Quatro Barras, Paraná e da Ñandexy'i Yxapy Rendy, do Tekowa Ywoty Renda, de Borda do Campo, Paraná. Ou seja, neste Aty estavam presentes algumas das principais lideranças Guarani Ñandewa [3] do Brasil e do Uruguai. Estavam ali juntos para se confraternizar, trocar experiências e conhecimentos, e saudar Ara Poty, a estação das Flores, da natureza em Mborayu [4].

            O Aty teve início logo após o pôr-do-sol como de costume. Tudo estava bem arranjado e ornado para esta ocasião.

            Conforme iam chegando, os participantes adentravam ao Opy, a oka sagrada, e se acomodavam em torno do tata porã, o fogo sagrado.

            Quando todos os convidados encontravam-se presentes, o paje foi até o centro do Opy, portando o petyngua e o pety, o cachimbo e o fumo, tomou a benção do tata porã e os entregou para a sua esposa, caminhando em torno do tata porã em sentido anti-horário.

            A esposa do paje recebeu de sua mão o pety e o petyngua e com reverência foi até o tata porã. Enquanto ela ascendia o petyngua o paje tocou uma série de notas longas em um paranã'mimby'guy [5].

            Após tocar o mimby o paje passou o instrumento para a Ñandexy'i  Jaxy Rendy, que após tocá-lo passou para o Ñanderu'i Karai Tatawa, e assim o mimby foi passando de mão em mão até retornar novamente à mão do paje.

            A esposa do pajé trouxe o petyngua aceso para o paje.

            Enquanto o mimby ia sendo tocado o paje fez pyte [6] nos objetos rituais e nas pessoas presentes. Foi passado também para os participantes aspirarem Yy'pety [7] e parika [8]. Após terminar o seu circuito o paje passou o petyngua para a Ñandexy'i Jaxy Rendy que fez um circuito parecido com o do pajé e passou o petyngua para o Ñanderu'i Karai Tatawa. E assim as coisas prosseguiram até o petyngua retornar às mãos do pajé. Para as pessoas que terminavam de fazer o pyte, a Ñandexy'i Yxapy Rendy servia kaayu [9].

            Nesse ínterim o paje executou no mbaraka guaxu, a harpa Guarani, o segundo canto do Aywu Rapyta, acompanhado por todos os presentes.

            Após esse primeiro momento que, diga-se de passagem, demorou horas o pajé tomou o ywyrayu, o bastão da palavra, o chacoalhou e disse:

            - "Há'ewete Ñamandu ñande jaikowe há'eguy xe aipota Jakaira Ñanderu, Ñandexy, Mbyte porã ñandekwerupe", ou seja: "agradeço à Ñamandu por nossas vidas e peço ao nosso Pai e a nossa Mãe Jakaira que derrame suas bênçãos sobre nós". E prosseguiu:

            - "Quero agradecer pela vinda de todos vocês. Agradecer a Jaxy nossa tendota [10] no Uruguai por todo o carinho que sempre teve pelo Ñande reko e pelo apoio que sempre deu não só para o nosso povo Guarani, mas também para todos os povos da América em trânsito no Uruguai. Peço que as medicinas de Ñandexy'ywy'retã, da nossa Mãe Terra, e de Jaxy, da mãe Lua, mbyte porã ndeekwerupe, sempre estejam com você, pois a avó Lua está em seu próprio nome-alma, Jaxy Rendy, Luz da Lua, sobre a terra. Há'ewei.

Quero agradecer pela vinda do Karai Tatawa Fernandez e por toda  a lembrança que traz do nosso povo de Aiguá, da Quebrada de Los Cuervos e do Cerro de Los Burros, também te agradeço por nos ter trazido a fala do pajé Karai Poty traduzida para o espanhol. Peço a Ñamandu que você possa ter uma boa estada conosco aqui, frente a este tata porã. E que possamos voltar a falar de Owerawa Karai, de Xumé e de Karai Poty, e nos alegrarmos com nossos antepassados e oferecermos nosso presente para as futuras gerações. Há'ewei.

            Quero agradecer a vinda da Ñeã Karai, quero agradecer pela sua dedicação ao Ñande Reko. E também pela lembrança que pode levar ao meu padrinho Karai Tataendy e pela visita que pode fazer ao povo do Tekowa Karugua. Gostaria também, que você nos dissesse como estão nossos amigos do Tekowa Karugua e em especial a família do Karai Tataendy. Há'ewei.

            Quero agradecer a vinda do Karai Tupã, é uma alegria tê-lo aqui e retribuir um pouco da hospitalidade que sempre teve para conosco na Kamby'ija, terra maravilhosa mirada por Tupambae. Há'ewei.

            Quero agradecer a vinda da Krexu Rete, presença  acolhedora que sempre nos apoiou nas idas até o Uruguai. Agradeço a Ñandexy Ete pela riqueza que lhe concedeu e que se expressa nas filhas que possui e nos seus maravilhosos netos, pois a família é a nossa maior riqueza. Que Ñamandu Ruwixa Ñdee Reguata, que Ñamandu sempre guie o seus passos nessa linda terra de Guyunuxa e em todas as terras. Há'ewei.

            Quero agradecer a presença do meu compadre Tataendy Ñeery e pelo bonito acompanhamento que me fez enquanto executava o canto.

            Quero agradecer muito a companhia de xerayxy Yxapy Rendy por nos ter preparado o kwaxya de Karai Poty,  pelo carinho que teve no preparo do Opy e de todas as coisas necessárias para este Aty. Aty em que honramos Ru'ete e Xy'ete Jakaira, os criadores do mundo e do seu desdobramento em toda procriação".

            Após a saudação em forma de agradecimentos o pajé chacoalhou o ywyrayu e o passou com a mão direita para a Ñandexy'i Jaxy Rendy que o tomou com a mão esquerda, o passou para a direita, o chacoalhou circularmente e iniciou o seu aywu, a sua reza:

            - "Eu hoje sinto uma grande necessidade de equilibrar o aru, princípio masculino e o axy, o princípio feminino dentro e fora de mim.

            Agradeço esta oportunidade de ver novamente isto através dos conhecimentos que nos foram entregues. Peço que meu sentir ajude nesse equilíbrio.

            Devo dizer que algumas formas de expressão, no Aywu Rapyta, me lembraram a escola católica, aquilo mais masculino, tipo "o criador", ou "no começo era o verbo".

            Por outro lado, tentar ver onde esta mais Ñamandu, esta mais em Kwaray? – Para mim, são expressões diferentes e igualmente válidas das criações. Gosto de sentir que meu pai é o Sol e minha mãe é a terra e que a terra é fecundada pelo pai e que todos somos seus filhos e filhas, todos somos irmãos e irmãs.

            Uma vez me disseram que a avó Lua era a primeira deste sistema, me chamou a atenção mas sinto que é verdade pois ela é a mais antiga.

            Gostaria de aprofundar em nossas vidas o resgate do feminino e do masculino. Gostaria de conhecer mais o que a Yxapy disse do Karai Poty pois concordamos que é o mais profundo. Há'ewei.

            Após o seu aywu a Ñandexy'i chacoalhou o ywyrayu e o passou para o Ñanderu'i Karai Tatawa Fernandez. Este recebeu o ywyrayu e da mesma maneira o chacoalhou e iniciou o seu aywu:

            - "Ha'ewete Ñamandu, Ñanderu, Ñandexy. Nesta noite yo tengo presente que sentado frente a Tata Porã, hace algunos años, 6 de mayo de 2002, escuché a Awaju Poty hablar de Xumê.

Estábamos con Nelson Caula en un Aty , en el Tekowá Ywyty Rendy, Cerro de los Burros, con Jeguaka y Endy. Ese mismo día sentí mucha emoción cuando Caula contó a Awaju que en un viaje al Paraguay a algunos delegados del gobierno uruguayo, que estaban investigando sobre la vida de Artigas allí, al preguntarles a los guaraníes por Artigas estos les hablaron sobre el Owerawa Karaí.

Al conocer que así llamaban a Artigas, Awaju hizo la explicación del nombre y coincidía con los criterios del Ñande rekó sobre el nombre alma, ya que el sabio guerrero nació el 19 de junio de 1764, Gua'an. Fue un honor estar presente en ese momento mágico e histórico a la vez, en que nos acercamos a la comprensión de Artigas como un iniciado guaraní. Varias confirmaciones hemos recibido después de esta historia.

Esa misma noche, Awaju habló de Xumé y surgió un sentimiento de emoción que no comprendí hasta el año siguiente, cuando luego de haber conocido los versos de Xumé, encontré enormes similitudes   de estos con los evangelios Apócrifos de Tomás. Las similitude  son asombrosas incluso algunas contextualizadas a los diferentes lugares donde se dan las enseñanzas. Por ejemplo donde uno habla de onza el otro de León, donde uno dice Tierra sin Mal el otro los reinos de los Cielos.

Otro momento importante fue conocer lo dicho por Karai Poty, donde confirma esta versión hablando del hermano gemelo de Jesús.

La cultura Guaraní basada en el Amor y la Luz a partir de Xumé, evidencia esta conexión por la recepción franca que dieron a los primeros blancos, especialmente a los primeros religiosos que llegaron identificados con la Cruz.

Confirmando esto dice Karaí Poty "algunos Kexuita eran de los nuestros, fumaban pety y tomaban Kaayu" . Seguramente un espiritu de tanta Luz como el de Kexu Krito, con un desafío tan impresionante, con la misión de abrir un camino de Luz, a contracorriente del pensamiento de la época, de sentar un precedente así, haya encarnado la energía de los quatro Ambá, con un conciencia pura de Ñamandu. Creo que el Ñande Reko es una forma de vivir para recuperar nuestra verdadera esencia espiritual, nuestra expresión cósmica. Lo cual trasciende lo guaraní en sí. Si bien el pueblo Guaraní tuvo (como otros) la misión sagrada de cuidar y proteger este conocimiento Supremo…Há'ewete a todos los Awa y Kuña Ete, Ywyraija e Ywyraijari, Ñanderu'i' y Ñanderxy'i, Mboea, Mboruwixawete y Mbaekuaa que hicieron posible esto".

Fez um silêncio e prossegui:

- "Esta forma de vida, este camino nos permite la sanación personal y a través de ella la del planeta, nosotros no enfermamos a la Tierra, somos la expresión de la enfermedad del planeta, somos la expresión de un pensamiento de separación, de autodestrucción de contradicción del planeta.

Esta manera del Ñande Rekó nos permite dejar de ser la enfermedad y convertirnos en la cura, es nuestra opción, nuestra sanación dejar de ser el cáncer y convertirnos en luz. Cada Aty, cada Maety, cada sanación personal nos ayudamos como parte de la madre Tierra, de Ñandexy Ywy Retã a sanarnos. Há'ewete Ñamandu, Há'ewete Ñanderu, Há'ewete Ñandexy. Ñamadu Mbyte Porã Ñandekwerupe.

Há'ewei".

            Tatawa encerra seu aywu e passa o ywyrayu para a Ñandexy'i Ñeã Karai que inicia o seu aywu:

            - "Ha'ewete Ñamandu, Ñanderu há'eguy Ñandexy por haverem nos possibilitado conhecer esta forma Guarani de rezar que nos permite nos aproximarmos do nosso ser mais profundo. Há'ewete pela espiritualidade que se expressa através do rezar com o petyngua e o kaayu. Nos ajudando a sensibilizar um pouquinho mais nossa percepção do sagrado contido em nós, nos outros seres da natureza e até onde nossa mente alcança. Ha'ewete por nos trazer o resgate da espiritualidade, a percepção que tudo é sagrado, há'ewete pela reza que vai muito além das palavras.

            Como já disse ao Awaju, ontem eu visitei a Aldeia do Karuguá, dos Guarani mbya em Piraquara. Fui recebida pela família do Karai Tataendy,  Hortêncio. Chegando lá conversamos sobre os ru'ete e xy'ete. Tataendy me disse que":

            - "Kwaray é o Deus-Sol e que o mundo está como está porque não tem mais mãe, só pai"; e começou a falar em Guarani mbya ficando muito emocionado".

            "Depois aproximou-se uma jovem índia que se chama Ara Poty, nome civil, Neiva, a qual estava quase parindo. Disse que": "Tupã é Jesus Cristo; e diz que não consegue continuar falando em Português sobre os ru'ete e xy'ete. Diz que o pajé fala durante as rezas dos ru'ete e xy'ete e da terra-sem-mal, diz: "- a terra-sem-mal é um lugar onde não existe as coisas desse mundo e que todos eles um dia irão para esse lugar". Disse mais uma vez: "o paje poderia falar mais sobre esse assunto".

            Jakaira , segundo Ara Poty: "é o Criador do mundo e Kwaray é também o Deus-Sol, criador de tudo o que existe". Indagada sobre o ru'ete Karai nada soube dizer.

            Sobre Ñanderu e Ñandexy disse: "que são nossos pais criadores". Observei uma divisão entre os mbya dessa aldeia. Ou seja, as kunhãs conversavam entre si e o mesmo acontecia entre os homens.

            Gostei porque nessa aldeia havia um puxiro de awaxy e uma  pequena horta familiar. Pude também ver a produção de artesanato deles: colares, petyngua, instrumentos musicais, mbaraka'i.

            Me chamou muito a atenção nesta visita a emoção que o padrinho do Awaju, o  Karai Tataendy sentiu ao falar das divindades.

            Xe há'ewete Ñamandu kowae aty.          Ñamandu Mbyte Porã Ñandekwerupe. Há'ewei".

            Ñeã Karai encerra seu aywu e passa o ywyrayu para o Ñanderu'i Karai Tupã que o chacoalha e inicia o seu aywu:

            - "Agradeciendo a Ñamandu por esta posibilidade, pido a Karai la inspiración de la palabra tratando de entender el sentido de las palabras de Karai Poty.

Si bien consigo literalmente comprenderlos, como inicio de esta comprensión comenzaré a recordar   los hechos mas marcantes que me llevaron a reconocer este camino como mío camino y esta cosmovisión como sentido a mi vida. Vou discribir mis passos de retorno hasta el opy, oka sagrada, hasta este momento com ustedes.

Recuerdo como primer hecho significativo el haber nacido en las faldas del Tupambaé, desde niño en la escuela siempre se decía que ese era un cementerio charrúa [11].

 Ya mayor, siendo un buscador, un buscador de un sentido de la vida y una forma espiritual de comprensión, habiendo renunciado al catolicismo y sus preceptos y diciéndome ateo, conozco en el año 1988 el Santo Daime e por essa via retornei ao espitirito do Kaapy, espírito da mata, nosso espirito. Una sola ceremonia fue suficiente para sentir a Dios y un nuevo sentido de la vida. Pasaron muchos años y ya a finales del '90 habiendo seguido por caminos mas terrenales: Sustento económico, búsqueda con algunas drogas. Conozco las primeras ceremonias del camino rojo y también el entendimiento de otra forma de uso de sustancias sicoactivas. Paralelamente se da un hecho fundamental y fue comenzar a encontrar piedras talladas; unas pocas primero y luego en forma de torrente. Del interés material inicial y a la falta de respuestas por esa vía comprendo que solo yo puedo comenzar a interpretarlas su sentido puramente espiritual.

Recuerdo una noche que habían salido publicadas en varios diarios ese descubrimiento que presa de la alegría y la excitación salimos con dos amigos a festejar y en medio del camino nos dirigimos a un templo de piedra; una enorme piedra apoyada en tres puntos:" La Caperuza".

Esa noche algo sucedió en nuestros seres. Al poco tiempo con 3 amigos mas: Pablo, Toti y Gustavo, comenzamos lo que sería la primer subida al Tupambaé.

Este hecho fue de tal trascendencia, que sin extenderme en él, puedo decir que se nos corrió un velo en la visión y en la comprensión.

Nunca en todas las veces que volví a ir al Tupambaé, ví lo que vimos aquella tarde, miles y miles de círculos de piedra, algunos de ellos hasta con el pasto cortado, extendiéndose desde la falda a la cumbre.

Después de eso llegó el sagrado encuentro con Karaí Tatawa y de inmediato a hablar del Tupambaé y de lo Guaraní y casi enseguida llegó el primer Maety, sin Awaxy Eté y mal indicado pero con enorme respeto. También llegó en forma muy mágica el primer Petynguá, presente de 2 amigos no conocidos entre sí. Carlos la pitera y Paco el cachimbo.

Al año siguiente fue Jaxy que me llama, que querían plantar y no tenían tierra, luego fue el encuentro con Awaju Poty y el inicio pleno de este camino. Ñamandu guatagua ñande jaguata. Há'ewei."

Karai Tupã passa o ywyrayu para a Ñandexy'i Krexu Rete. Que faz seu aywu:

- "Xe há'ewete Ñamandu kowae aty, opy, tata porã, kaayu, pety, parika, yy'pety. Quero agradecer ao Awaju e a Yxapy por este aty e pedir mbyte porã ñandekwerupe, pedir pelos ma'ety e por todo o nosso povo do Uruguai. Haewei."

Krexu passa o ywyrayu para o Ñanderu'i Tataendy Ñeery. Que faz seu aywu:

- " Xe Ha'ewete Ñamandu por essa nossa possibilidade de poder desfrutar destes conhecimentos ancestrais e refletir sobre eles. Conhecimentos   que só chegaram até nós pela perseverança e sabedoria dos poucos detentores e das poucas detentoras destas informações que resistiram aos anos de extermínio de nosso povo, mas que ainda é viva, e como disse Karai Poty: se o espírito ainda vive nós vencemos! Este pensamento é maravilhoso e mostra toda a força de um ser que dedicou sua vida por uma causa e segurou como pode seu propósito. Um relato extremamente apaixonado este do Karai Poty, ainda preocupado com o futuro, um verdadeiro manifesto pelo Ñande Reko e a visão de que os detentores e as detentoras da tradição estão perdendo sua força e esquecendo Kexu Krito, Xumé e Ñamandu.

            Com relação ao Aywu Rapyta é fascinante perceber como foram se originando os elementos do universo e em que ordem cronológica cada um aparece. Primeiro tem Ñamandu, que gera chamas e neblina, depois a palavra, depois o amor, depois o som, o som aparecer depois da palavra oque nos remete a idéia da comunicação sem palavras, algo que com certeza poderíamos trabalhar em nossas vidas; aí aparecem os desdobramentos de Ñamandu – Karai, Jakayra, Tupã e Ñanderu , o que para nós ñandewa causa estranheza é não aparecer Kwaray e somente depois termos as respectivas mães de cada desdobramento; e finalmente uma indicação da louvação dos eminentes e excelsos pais e mães verdadeiros, de forma enfática, como para não se perder de vista esta ligação com a ancestralidade. Xe há'ewete Ñanderu, Ñandexy kowae aty, ñande ma'ety, kowae ara poty. Há'ewei".

            Tataendy passa o ywyrayu para a Ñandexy'i Yxapy Rendy que faz o seu aywu:

            - " Xe ha'ewete Ñamandu, Ñanderu ha'eguy Ñandexy pela vida que pulsa em cada ser da nossa Mãe Terra. Hoje me sinto muito agradecida pela força que gera a vida. Sinto o aspecto feminino desabrochando com muita beleza, vigor e plenitude na natureza nesse nosso tempo de Ara Jakaira.

Agradecida por ser mulher, mãe, esposa. Sinto a alegria de adentrar no Opy e perceber a energia de acolhida e aconchego da casa de reza. Ha'ewete pelo poder sanador do tata porã, que refaz meu corpo, sana meu espírito e conforta meu ser mais profundo. Ha'ewete por Ñamandu ter criado juntos a partir do seu sonho Ñanderu Papa Tenonde e Ñandexy Ete, por poder dar espaço para Nossa Mãe, e pensar e sentir Deus como um ser Feminino.

            Me chamou muito a atenção no segundo canto do Aywu Rapyta que o Awaju acabou de cantar, o  fato de Pablo Wera chamar Ñamandu apenas de pai. E ter criado primeiramente os ru'ete e só depois apresentar as xy'ete. Os homens estão excluindo a mãe. Pablo Wera se refere a Ñamandu primeiramente como um ser masculino, como pai, que cria os ru'ete e os filhos, referindo-se somente bem mais tarde ao aspecto feminino da criação, aos xy'ete e as futuras filhas.

No discurso proferido no petey ara Karai Poty coloca que Ñamandu criou nossos primeiros pais Ñanderu Papa Tenonde e Ñandexy Ete. Isso vem de encontro da palavra que o Karai Tataendy deu para a Ñeã Karai sobre o mundo estar sem mãe. Isto de se relegar o aspecto feminino quando se reza, quando se pensa na divindade, sem dúvida alguma está gerando um desequilíbrio imenso no pensar e no sentir a espiritualidade e tudo que compreende a existência do próprio ser humano.

O canto XI do Mborai Porã me reporta a mensagem que tudo nasceu de um sonho de Ñamandu, e que Ñanderu Papa Tenonde e Ñandexy Ete existiram juntos nele e tudo o que existe foi criado a partir disso, e que então tudo e todos estão irmanados por toda a eternidade. Ñandexy Jakaira xe amba ijara reakwã ñande ñee porã. Há'ewei."

 

2.3 COMENTARIO

As falas mesmo tendo sido feitas em português ou em espanhol, estiveram cheias de termos em Guarani. Porém, estes termos não comprometem o entendimento das idéias.

O canto do Aywu Rapyta e a fala de Karai Poty estimularam variadas reflexões nos Ñanderu'i e Ñandexy'i presentes.

Para a Ñandexy'i Jaxy Rendy, o canto, o Aywu Rapyta trouxe a lembrança da maçante catequese que teve que suportar no colégio católico onde estudou. Onde o Deus era masculino e opressivo e onde havia um verbalizar desprovido de sentimentos. Também despertou nela o desejo de sanar-se, de equilibrar seu princípio masculino com o seu princípio feminino.

O Ñanderu'i Karai Tatawa expressou o desejo de sanação e uma constatação do desiquilíbrio não só a nível pessoal, mas também planetário. Acredita que a sanação pessoal é a via para a sanação do planeta. A Ñandexy'i Ñeã Karai nos trouxe a palavra do Tuja Karai Tataendy que lhe fez o alerta de que "o mundo esta como esta porque não tem mais mãe, só pai" isto dito por um tuja octagenário.

Também trouxe o sincretismo da jovem Ara Poty, que estava por parir, e que lhe disse que Tupã era Jesus Cristo.

O Ñanderu'i Karai Tupã relata a sua saga de retorno ao Ñande Reko. Fala do seu encontro com as pedras talhadas que são pedras milenares, resíduos de uma cultura muito antiga. De sua profunda relação com a montanha Tupambae, em cujo sopé vive. Falou também de uma forma muito emocionada do seu "sagrado encontro" com o Ñanderu'i Karai Tatawa.

O Ñanderu'i Tataendy Ñeery lembrou dos anos de extermínio que na verdade foram séculos, e cita as palavras do Karai Poty: "se o espírito ainda vive", e diria – e o nosso corpo ainda vive – " nós vencemos".

Observa também que no Aywu Rapyta não há menção direta a Kwaray, o que lhe causa espanto.

A Ñandexy'i Yxapy Rendy inicia o seu aywu saudando Ara Poty, a primavera. E aponta com desapontamento o fato de Pablo Wera no Aywu Rapyta chamar Ñamandu apenas de Pai e de ter apresentado na sua versão da criação primeiro os ru'ete, os pais verdadeiros e somente depois as xy'ete, as mães verdadeiras.

Ratifica as palavras trazidas pela Ñeã Karai do Karai Tataendy sobre "o mundo estar sem mãe". E confirma que, sem dúvida "isso de se relegar o aspecto feminino quando se reza, quando se pensa na divindade, esta gerando um desequilíbrio imenso, no pensar e no sentir a espiritualidade e de tudo que compreende a existência do próprio ser humano".

Ou seja, o desequilíbrio apresentado pela Jaxy Rendy, a primeira que fez o aywu após o paje, tem o seu pensamento ratificado pela Yxapy Rendy, a última a fazer o aywu.

Neste momento o desequilíbrio parece que norteia o povo Ñandewa-Guarani. Foi a tônica em todas as falas.

 

3 KARAI POTY OMOMBEU- KARAI POTY DISSE

3.1 APRESENTAÇÃO

O paje Karai Poty, cujo nome civil era Gumercindo Fernandez, viveu seu período de êxtase místico, ou seja, de missão redentora, antes de ir com os seus mais chegados para ywy'marã'hey, a terra sem males, do final da década de 60 até o início da década de 80, no tekowa Jaixa Porã, aldeia de Ubatuba, por aproximadamente treze anos. Ele veio do Uruguay tendo passado pela Argentina, pelo Paraguai e pelos estados do sul do Brasil, quando se fixou no tekowa Jaixa Porã, já era idoso.

Os textos do paje Karai Poty foram apresentados previamente ao aty de celebração do Ara Poty pela   Ñandexy"i Yxapy Rendy e foram traduzidos para o espanhol  pelo Ñanderu'i Karai Tatawa.  Estes textos hoje são propriedade da IANAI. Foram apresentados seis dos treze textos:

 

3.2 TEXTO - KARAI POTY DISSE

3.2.1 Ara petey

Quem criou tudo foi Ñamandu, porque ele criou nossos primeiros pais Ñanderu Papa Tenonde e Ñandexy Ete. E de Ñanderu Papa Tenonde e Ñandexy Ete nasceram ru'ete e xy'ete Tupã, ru'ete e xy'ete Jakaira, ru'ete e xy'ete Kwaray e ru'ete e xy'ete Karai. Kwaray é o próprio coração de Ñamandu. É a luz que brilha no sol e em todas as estrelas. O tata porã também é o sol. O sol, o nosso pai e mãe Kwaray se manifesta e se oculta nas coisas, como no dia e na noite.

            Nosso pai e nossa mãe primeira estavam em Ñamandu quando ainda nada tinha ganho forma. Tudo o que ganhou forma aqui neste mundo é reflexo do que existe em Ñamandu, aqui existe de forma imperfeita, em Ñamandu tudo é perfeito.

            O mundo nasceu do amor de Ñanderu e Ñandexy. Ñandexy pariu o mundo em uma grande explosão de luz e som, raio e trovão. Então tudo no mundo é irmanado, todos somos filhos e filhas de Ñanderu e Ñandexy.

 

3.2.2 Ara mokoy

O povo Guarani é um povo de Deus, de Ñamandu. Foi o Mboruwixawete Xumé que ensinou para os nossos pais e para as nossas mães, bem antes do jurua que o Guarani é um povo de Deus.

Kexu Krito foi Kwaray quando andou aqui nesta terra e Xumé seu irmão gêmeo.

Depois veio o kexuita e uns eram dos nossos e fumaram pety e tomaram kaayu com nossos pais e com as nossas mães. E nós aprendemos também com os kexuita sobre Ñamandu Tupã, o Deus dos exércitos.

E o Deus dos exércitos lutou com a gente para vencer os jurua que nos atacavam, e nos vencemos o jurua, senão quem estaria aqui contando esta história.

Mas hoje tem muito Guarani que está perdendo esta luta e está se entregando para a tristeza. Isso esta acontecendo porque esta perdendo a lembrança de muitas coisas.

Porque podem nos tirar tudo mas se nós não perdermos a lembrança das coisas nosso espírito vence. Mas hoje muito Guarani está esquecendo de Kexu Krito, de Xumé e até de Ñamandu estão esquecendo.

Não podemos esquecer Kexu Krito porque ele é o Sol do nosso coração. E Ñamandu foi que criou tudo. Se nós esquecermos isso então a sombra da tristeza cobre o sol dentro da gente e daí não tem remédio que cure.

Por isso hoje eu quero dizer que Ñamandu Tupã vai curar o nosso coração e que Ñamandu Jakaira vai animar a nossa dança e que Ñamandu Karai vai animar o nosso canto e que Ñamandu Kwaray vai brilhar novamente em nosso coração e nunca mais vamos esquecer as nossas lembranças, as coisas que nos ensinaram nossos pais e nossas mães. Para que também nossos filhos saibam dessas coisas para que sempre Kwaray brilhe no coração dos nossos filhos e de nossas filhas formosas.

 

 3.2.3 Ara Mboapy

            Hoje é a terceira noite em que falo com vocês. Ficaremos juntos por treze noites. E então nós iremos para Ywy'marã'hey. [12] Ficaremos assim por treze dias, somente fumando pety e tomando Kaayu, será a nossa despedida.

            Essa minha fala é para vocês que irão permanecer aqui por mais um tempo.  A Ñanju Miri esta escrevendo  o que estou dizendo em um kwaxya, ela ainda sabe fazer kwaxya e escrever com as letras sagradas.

            Antes que nós nascêssemos Ñamandu pretendeu esse exato momento. Não é por acaso que a Ñanju Miri está escrevendo esse kwaxya. É no ñee porã, espírito sagado,  que descobrimos quem somos e o sentido de nossa vida. Muito antes de termos ouvido falar de Ñamandu e mesmo de nossos pais e de nossas mães terem ouvido falar dele (a) Ele (a) já tinha seus olhos amorosos sobre nós.

            Agradeço aos Mbaekwaa e as Mbaekwaa por terem escrito nas pedras os itakwaxya, também agradeço aos Mboea e as Mboea que me ajudaram a aprender sobre essas coisas. Agradeço a Ñamandu e a vocês por poder compartilhar essas coisas com nosso povo.

            Também quero dizer que estamos indo porque o Mboruwyxa está vindo, nós viemos para preparar o caminho.

            A Ñanju Miri vai entregar para ele este kwaxya que esta escrevendo, não será difícil de encontrá-lo, porque ninguém é semelhante a ele. Ele veio em um veículo de Ñamandu e foi conduzido até o ventre de sua mãe por um (a) Jukupe Guaxu.

            Ele terá em si todo o conhecimento, e irá restabelecer as coisas antigas nas condições do nosso tempo. Mas ele próprio só saberá que é o Mboruwyxa quando for tujá [13], e só então terá consciência de que tem todo o conhecimento desde que nasceu.

            Será a volta de um grande guerreiro, que saberá o Kwaarupe [14] desde o ventre de sua mãe e o seu Mboea será a sua própria vida, que o conduzirá com severidade até ser tujá.

            Muitos lamentarão por não o terem reconhecido, e muitos rangerão os dentes por o terem traído, mas os homens e mulheres que o seguirem neste caminho que estamos preparando, verão ywy'marã'hey.

            O propósito das minhas vidas foi preparar o caminho para Ñamandu Ara Guaxu [15]. Há'ewei.

 

 3.2.4 ARA YRUNDY

Ñamandu, Ñanderu e Ñandexy; Ru'ete Tupã, Jakaira, Kwaray, Karai; Xy'ete Tupã, Jakaira, Kwaray, Karai; Ñandeija. Um só é o caminho, uma só é a porta mas diferentes são os passos, cada um tem a sua maneira de caminhar. Ñamandu é um, mas é um para cada um de nós.

Agora se você me pede para dizer quem é Ñamandu, eu te digo que passaria a vida te dizendo dele e em cada momento te diria diferente e de nada adiantaria para você porque só você pode sentir e saber para você. Então eu não digo nada, ou canto, ou danço, ou rio, ou choro.

Tem também gente que diz que não serve para nada o Guata Porã (caminho sagrado). Que é coisa de louco, de quem não tem o que fazer. Então eu digo que, nossas avós e nossos avôs jamais diriam isso porque eles e elas tinham o caminho como a coisa mais importante da vida. E todo o mundo estava em equilíbrio. Hoje tudo esta em desequilibro até a natureza o homem desequilibrou e como nós fazemos parte da natureza também desequilibramos e temos essa loucura de dizer que não há caminho. Então quem está no caminho mais tem que cantar, mais tem que dançar para compensar para manter a vida, para lembrar das nossas avós e de nossos avôs para alegrar o espírito de nossas crianças.

Temos que manter as coisas, nossos irmãos  e nossas irmãs da natureza, nosso equilíbrio, nestes tempos difíceis. Mas ainda temos o opy, o tata porã, o pety, o kaayu, o awaxy ete, o ywau, o tekowa porã, água pura, ar puro, e alimento puro. Temos Ñamandu, então ainda temos tudo. Temos a vida e a morte nas mãos.

 

3.2.5  ARA PETEY'PO

Os pajé dos jurua vem aqui e querem ensinar a religião deles para nós. Tudo bem é bom aprender coisas diferentes. Mas não é bom eles acharem que nós não temos religião, ou quererem que nós sejamos da religião deles.

Eu entendo que o que eles chamam de religião e o que eles chamam de ciência é o que nós chamamos de Ñande reko, para nós é uma coisa só. Então o nosso jeito e o do jurua é bem diferente, mas precisamos nos entender.

Agora uma coisa é bem diferente: o jurua pensa que existe. Então eles foram devorados pela onça e agora precisam devorar a onça de dentro dela.

Quem pensa que existe vive no wa'ekwe. Não podemos perder isso de vista, que o wa'ekwe precisa ser devorado pelo ñee porã. Quando isso acontece é o aguyje. Isso é muito importante porque quem não compreendeu isso não compreendeu nada. Esse é o nosso jeito, essa é a nossa vida. Assim viviam os avôs dos nossos avôs e as avós de nossas avós. Quando a terra era perfeita.

 

3.2.6 MBOAPY MEME ARA

Hoje vocês me pediram para falar sobre a intimidade e me perguntaram sobre o porque do jurua não saber viver sem precisar de tanta roupa. Mas eu vou falar apenas sobre vocês, e vocês pensando um pouco poderão encontrar as respostas que não estou dando.

O aty é uma cerimônia na qual pedimos ao Ñee porã (espírito sagrado) que nos ajude, nos guie. Os elementos do aty nos permitem comungar com o mais íntimo da gente mesmo, com a comunidade e com as forças da natureza que nos rodeiam.

No aty pedimos ao espírito que nos mostre os empecilhos que nossa limitação, a limitação própria da gente, não deixa ver. O aty nos ajuda a tirar o empecilho que atrapalha a visão do nosso verdadeiro espírito e dos outros espíritos.

Toda vez que você vai para um aty deve reconhecer que lá estão nossos (as) ancestrais e que há ali todo um mundo de espíritos ao redor. No momento do aty o que se tem que fazer é penetrar no mais profundo do coração e escutar o ritmo. Escutar a maneira como ele ou ela fala e escutar a maneira como canta o espírito. O problema é que muitas vezes a gente não escuta o bastante para ouvir.

É importante também tirar os disfarces, porque quem engana o outro engana na verdade ele mesmo. E quem engana o espírito engana na verdade a vida, e aí não tem jeito de acertar.

Também é importante reconhecer os nossos erros. Um ou uma Mbaekwaa não é aquele (a) que nunca erra, que nunca fracassa. Mas um ou uma  Mbaekwaa é aquele (a) que amadurece com os erros e com os acertos.

É bom saber que é fácil viver bem no ara poty da vida, mas só os Mbaekwaa sustentam o ywyra rete (a dignidade) no ara ymã da vida. Só um (a) Mbaekwaa sabe trabalhar os golpes como ferramenta para construir seu apyka. Agora para aqueles (as) que resolvem caminhar juntos nesta vida, a melhor maneira de começar é iniciar reconhecendo o sagrado em tudo. Quando sentimos que a terra sobre a qual caminhamos não é lama e que as árvores e que os animais têm sentimento, podemos começar a aceitar a nós mesmos como espíritos que vibram com todos os espíritos que nos rodeiam.

Quando uma pessoa reconhece que é um espírito em um corpo e que as outras pessoas também são espíritos em um corpo humano começam a entender que seu corpo é sagrado e que o amor não é só um meio de ter prazer. Então, nesse momento passa a enxergar as outras pessoas com outros olhos e então, não vê mais o corpo só como uma fonte de cobiça mas como um opy. E o amor então é um chamado que chega da mais límpida fonte do espírito-corpo).

O espírito une as pessoas para dar a oportunidade delas caminharem juntas. Quando isso acontece elas ouvem a canção do mborayu. É um canto ao qual ninguém pode resistir: ouve aonde estiver, pode estar acordado ou dormindo, longe ou perto, não tem como deixar de ouvir.

Um ou uma Mbaekwaa pode andar desnudo (a) e todos estão desnudos (as) para o seu olhar. Mas só um ou uma Mbaekwaa pode reconhecer outro (a) Mbaekwaa. Quem tem o olho fechado não pode enxergar nada. Quem tem o ouvido fechado mesmo ouvindo um ou uma Mbaekwaa cantar não escuta nada.

O Guata Porã, caminho sagrado, inicia quando no íntimo ouvimos a voz do ñee porã vibrando no coração.

 

3.3 COMENTÁRIO

Sem dúvida não foi sem medida que a Ñandexy'i Yxapy Rendy escolheu o texto do Karai Poty, e que a Ñandexy'i Jaxy Rendy o endossou. Também não foi por acaso que a Ñandexy'i Ñeã Karai escolheu as palavras do Tuja Karai Tataendy que exaltou Ñandexy Ete, a Grande Mãe. Elas escolheram estas falas porque são mulheres e sentem nas suas vidas o resultado desse desequilíbrio, em direção ao masculino, que se traduz em forma de opressão sobre as suas feminilidades. Os seus apelos são em direção a uma compensação, a um respeito pelos seus seres.

O tuja Karai Tataendy, da quantidade de seus anos vividos sobre a terra e da sua sabedoria de viver, também manifestou a necessidade dessa compensação. Talvez até pela própria feminilidade que se expressa em seu ser equilibrado. E que é ultrajada pela comunidade envolvente. Por seu gosto de usar tiaras, brincos, colares, pulseiras, tornozeleiras, plumagem e pinturas. Que é natural ao awa Guarani, ao homem Guarani, mas que é vista como travestimento do feminino pela comunidade que oprime o feminino e que é dominante no espaço que circunda e restringe o povo Guarani. Na verdade, o equilíbrio entre o masculino e o feminino, é visto como tendenciosidade   para o feminino pelo masculino misógeno.

Curioso que um dos textos que mais agradaram aos pesquisadores de formação européia, norte-americana e seus séqüitos da América Latina, foi o Aywu Rapyta, que como bem observou Jaxy Rendy, lembra o catecismo cristão. E como bem observou Yxapy Rendy, coloca Ñamandu como Pai. Certamente este agradar não é isento.

Karai Poty tem Ñamandu no seu devido lugar, como Ñee Guaxu, Grande Espírito, como Ñee Porã, Espírito Sagrado, que cria ao mesmo tempo Ñanderu Papa Tenonde, Nosso Pai Primeiro Último e Verdadeiro e Ñandexy Ete, Nossa Verdadeira Mãe e que deles nasceram juntos os ru'ete e as xy'ete, ou seja, os pais e as mães dos espíritos nominados.

Porém, Karai Poty faz um sincretismo, que aparece também na última carta de Andresito Guakurare. Esse sincretismo surgiu quando a defesa do povo Guarani foi necessária na grande guerra de extermínio que ocorreu no final do século XIX. Andresito na sua última carta, quando vê que não tem saída e sabe que sua luta é suicida, mas que para ele e seu contingente é melhor morrer de pé do que curvado, invoca também Ñamandu Tupã, o Deus dos Exércitos. Deus dos Exércitos que aprendeu nas reduções, com o kexuita, com os jesuítas. Karai Poty relembra essa evocação no Ara Mokoy, no texto do segundo dia de aty que fez com o seu povo. E rearticula dizendo que "o Deus dos exércitos lutou com a gente para vencer o jurua – os invasores – que nos atacavam, e nos vencemos o jurua, senão quem estaria aqui contando esta história".

No Ara Mboapy Karai Poty usa muito o pronome "há'e" que em Guarani significa ele ou ela. E na tradução que fiz com a Yxapy tivemos que traduzir na forma ele (a) e dele (a) porque na língua portuguesa e espanhola e acho que também nas outras línguas européias a discriminação já se dá na própria língua, separando o homem e a mulher como distintos do humano ser. Em Guarani para se dizer homem ou mulher tem que nominar awa ou kunhã. O pronome pessoal , possessivo e reflexivo "há'e" é comum de gênero. E eu e a Yxapy ficamos contentes ao tomar consciência dessa diferença, assim como da ausência do artigo distintivo de gênero em nossa língua, ao estarmos fazendo a tradução, embora isso tenha dificultado um pouco a estética da tradução.

 

4 PABLO WERA OMOMBEU –  O SEGUNDO CANTO DO AYWU RAPYTA

4.1 APRESENTAÇÃO  

Cadogan destaca a importância desse canto dizendo que: "el contenido de estos versos, que contituyen, a mi parecer, el capitolo más importante de la religión Mbyá-Guaraní..." CADOGAN, Leon. 1953, p.127.

E Pierre Clastres diz que: "este texto, de importância capital para a compreensão do pensamento Guarani é ao mesmo tempo o discurso de sua origem e a citação de seu destino. O texto descreve o aparecimento do Deus, este inúmera de certa forma os trabalhos de Ñamandu, os diferentes elementos de sua pedra filosofal, raiz e modelo de toda imagem futura. Depois da teogênese, a antropogênese. Não vendo os humanos como coisas do mundo mas humanos como parte do divino".

E mais: "o Deus se desdobra. Ele é o começo e o fim, seu saber sobre as coisas precede as próprias coisas, elas são inscritas no saber que ele tem. Produtor do nosso tempo, isto é, do eterno calor vital, Ñamandu faz existir as imagens deste tempo, a chama como calor e luz, a bruma como signo da chama. Haverá nesse mundo uma dupla cópia dessa bruma: de uma parte a neblina que os primeiros longos sóis fazem surgir acima das florestas no fim do inverno; de outra parte, a fumaça do tabaco que fumam em seus cachimbos os sacerdotes e os pensadores indígenas. A fumaça do tabaco repete a bruma original e traça, elevando-se do cachimbo o caminho que conduz o espírito para a morada dos deuses". CLASTRES, Pierre. 1974, p.27.

Kaka Wera Jekupe, acrescenta: "estas palavras formosas apareceram pela primeira vez em forma escrita no Brasil em 1953, numa iniciativa da Universidade de São Paulo, na série 'Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras', com o título Aywu Rapyta (traduzido como 'Os fundamentos da linguagem humana'). WERA, Kaka. 2001, p,20.

E mais: "León Cadogan, antes de tornar-se Tupã Kuxuwy, diz que: - havia sido exatamente essa a parte que o havia levado a penetrar fundo, durante anos, a fim de compreender a cultura Guarani. Disse ainda que permaneceu seis anos transcrevendo hinos conselhos, mitos".

E continua discorrendo sobre um diálogo que Cadogan e Pablo Wera tiveram. Ele conta que um dia, na aldeia Cadogan pergunta a Pablo Wera: "se estivesse discorrendo sobre os ñee porã tenonde (as palavras formosas) e teus netos te perguntassem o significado de aywu rapyta, que responderia?

- Aywu rapyta, o guero-ywara Ñanderu Tenonde Ñee'ey mbytera (o ser fundamenta-se no fato de ter sido desdobrado de nosso Pai Primeiro, o ser fez-se parte da divindade primeira, como medula, palavra alma, da coluna do Criador".

E complementa: "o ser e o todo manifestam-se expressando a marca do masculino (jeguaka) e a marca do feminino (jaxuka) e colocando a vida em movimento. Esses três mundos acontecem de modo interdependente e fundamentam o ser".

E ilustra: "as dimensões do ser vibram em tom de sete notas ancestrais, incluindo seu silêncio. Essas notas vibrantes interpenetram-se, gerando a música da vida, totalizando o ser". WERA, Kaka. 2001, p. 56 e 57.

Então, o segundo canto do Aywu Rapyta foi recolhido por León Cadogan junto ao paje Pablo Wera.   A tradução apresentada foi realizada por mim, junto com a Ñandexy'i Yxapy Rendy.

 

4.2 TEXTO - PABLO WERA OMOMBEU

                    I

"Ñamandu ru'ete tenonde gua

O ywara petey'i guy,

O ywara py mba'ekwaa guy,

O kwaa-ra-ra wy ma,

Tataendy, tataxyna o guero-mo-ñemoña.

 

                       II

O ã-my wy ma,

O ywara py mbae'kwaa guy,

O kwaa-ra-ra wy ma,

Aywu rapyta rã i oikwaa o jeupe.

O ywara py mbae'kwaa guy,

O kwaa-ra-ra wy ma,

Aywu rapyta o guero-jera,

O guero-ywara Ñanderu.

Ywy oikwo ey re

Pytu yma mbyte re,

Mbae-jekwaa ey re,

Aywurapyta rã i o guero jera

O guero-ywara Ñamandu Ru'ete

Tenonde gua

 

                         III

Aywu   rapyta rã i

Oikwaa ma wy o jeupe

O ywara py mba' ekwaa guy,

O kwaa-ra-ra wy ma,

Mborayu rapyta rã oikwaa o jeupe.

Ywy oiko ey re,

Pytu yma mbyte re,

Mba'e jekwaa ey re,

O kwaa-ra-ra wy ma,

Mborayu rapyta rã i

Oikwaa o jeupe.

 

                         IV

Aywu rapyta rã i o guero-jera

I ma wy,

Mborayu petey o guero-jera i

Ma wy,

O ywara-py mba'ekwaa guy,

O kwaa-ra-ra wy ma,

Mba'e-a'ã rapyta petey i

O guero-jera o jeupe.

Ywy oikwo ey re,

Aywu rapyta

Pytu yma mbyte re,

Mba'e-jekwaa ey re,

Mba'e-a'ã petey i

O guero-jera o jeupe.

 

 

 

                               V

Aywu rapyta rã i o guero-jera

I ma wy o jeupe;

Mborayu petey i o guero-jera

I ma wy jeupe, o xareko imo ma

Mavae pe pa aywu rapyta

O mbo-já'o i   awã;

O xareko iño ma wy,

O ywara-py mba'ekwaa guy,

O kwaa-ra-ra wy ma,

O ywara irum rã i o guero-jera.

 

                                VI

O xareko iño ma wy

O ywara-py mba'ekwaa guy,

O kwaa-ra-ra wy ma

Ñamandu py'a-guaxu o guero-jera

Jexaka mba'ekwaa rewe o guero-jera.

Ywy oiko ey re,

Pytu yma mbyte re,

Ñamandu py'a guaxu o guero jera.

Gua'y reta ru'ete rã,

Gua'y reta ñee ru'ete rã

Ñamandu py'a guaxu o guero-jera.

 

                                 VII

A'e wa'e rakykwe guy,

O ywara-py mba'ekwaa guy,

O kwaa-ra-ra wy ma,

Karai ru'ete rã,

Jakaira ru'ete rã,

Tupã ru'ete rã,

O mbo-ywara jekwaa.

 

                                   VIII

Gua'y reta ru'ete rã,

Gua'y reta ñee ru'ete rã,

O mbo-ywara jekwaa.

Ñamandu Xy' ete rã i

 

Karai ru ete

O mbo-ywara jekwaa

O py'a rexei warã

Karai xy ete rã i

Jakaira ru' ete, a' e rami awei,

O py'a rexei re warã

O mbo-ywara jekwaa

Tupã xy ete rã i.

 

                                IX

Guu tenonde gua ywara-py

Mba'ekwaa o mbo-já'o rire ma

Aywu rapyta rã i o mbo-já' o

Rire ma; mborayu rapyta i o mbo-já'o

Rire ma;

Kwaa-ra-ra rapyta o gueño'ã rire,

A'o kwe i py:

Ñee ru'ete pawengatu,

Ñee xy'ete pawengatu.

A'e wa'e rakykue guy

Ñamandu ru'ete

O py'a rekei wãrã

O mbo-ywara jekwaa

Ñamandu xy ete rã i

 

 

4.3 TRADUÇÃO – O SEGUNDO CANTO DAS FALAS SAGRADAS

I

Ñamandu, Pai Verdadeiro

Principiando tudo, de

Um pequeno primeiro intentar

Do saber inerente gerou

Chamas, neblina em fusão.

 

II

Manifestando-se assim

Do saber inerente gerou

Do seu divino ser

Formas que se expressavam

Quando tudo era noite

III

E pequenas palavras do futuro

Como coisas que serão grandes

Um dia, teceram mundos e

Como fonte de todos os cantos

O amor manifestou-se assim.

 

 

IV

E pequenas palavras do futuro

Como fonte de todas as coisas

Manifestaram-se assim em canto

E do saber inerente ao amor

As palavras desdobraram-se em mundos

 

V

E pequenas palavras do futuro

Como fonte de todas as coisas

Manifestaram-se assim em canto

E do saber inerente ao amor

Brotaram os divinos companheiros

 

VI

E pequenas palavras do futuro

Como fonte de todas as coisas

Refletiram-se no grande coração

Pai de todos os mundos

E de todos os filhos do mundo.

 

 

VII

E depois dessas coisas

Refletiu-se no grande coração

Tomando a forma de sua divindade

Karai, Jakaira, Tupã irradiantes

Pais de todos os mundos.

 

VIII

E depois destas coisas

Refletiu-se no grande coração

Tomando forma em frente,

Dois Pais irradiantes

As Mães de todos os mundos.

 

IX

E tendo todas essas coisas

Ganho formas que se expressavam

O amor desdobrou-se  em silêncios,

Em palavras, em gritos de louvor

Ao Pai e a Mãe dos Mundos.

 

 

            4.4 COMENTÁRIO

            Quando escolhi o segundo canto do Aywu Rapyta que inclusive não pertence a tradição Ñandewa propriamente dita e sim a tradição Mbya, escolhi para cantar, pela beleza da melodia e da poesia que resulta muito bem acompanhada pela mbaraka guaxu, a harpa Guarani (Paraguaia) e pelo mimby (flauta Guarani). E também influenciado pela notoriedade que este texto goza junto aos estudiosos da cultura Guarani, pela recomendação que é feita desse canto.

            Quando a Jaxy colocou a sua crítica e quando a Yxapy ratificou seu descontentamento, confesso que fiquei desconcertado pela minha falta de atenção. E o que posso dizer é que vou procurar ser mais atento ao que os "estudiosos" dizem e a mera beleza estética de um canto.

            O que quero registrar nesse momento é meu "eru ranhe", meu pedido de desculpas, não toco mais esse canto, serei mais atento ao repertório que escolho para executar. Quero agradecer à Jaxuka que se expressou em nossas kunhã, em sua sabedoria e beleza. Agradecer pelo que aprendemos cotidianamente com elas. E pedir para Jeguaka que sempre se expresse em nós, em sua sabedoria e beleza. Para que o equilíbrio entre o aru e o axy permaneçam entre nós, equilibradamente desequilibrados como em um jeroky, em uma dança, para que possamos ser sanação e não doença para ñandexy'ywy'retã, para a mãe terra,   como pediu o ñanderu'i Karai Tatawa.

           

5 CONCLUINDO

         5.1 JEROKY: A DANÇA SAGRADA

         O jeroky é uma memória que dança. Dança-se no presente o passado e o futuro. É também um sentimento de transformação corporal que enraíza a memória em movimento. A tradição de lembrar dançando é o saber encarnado em gestos vivos.

            A memória é um elemento essencial da construção individual e coletiva de identidade. Memórias sobrepostas e contraditórias se expressam no aywu e se atualizam no jeroky, no opy, no espaço de ritualização da memória. Onde equilibramos as muitas vozes (aywu) e os corpos em busca de expressão (sanação), revivendo toda a memória encarnada desde a criação, girando em torno do tata porã como os astros em torno do sol, dança cósmica presente desde a cosmogênese até o futuro enigmático ser. Como atualização do sempre, relembrando as vozes que vão transformando as fisionomias, que na complementação do conversar juntos e do dançar juntos vão se estabilizando e desestabilizando, num eterno jogo de memória.

            Reavivando memórias recentes convém lembrar aqui, o que a ñandexy'i Jaxy Rendy disse no seu aywu: "eu hoje sinto uma grande necessidade de equilibrar o princípio masculino e o princípio feminino dentro de mim". E o que o ñanderu'i Karai Tatawa disse: "nossotros no enfermanos la tierra, somos la expressión de la enfermedad del planeta, somos la expresión de um pensamiento de separación, de alto destrucción, de contradicción del planeta".

            O tuja Karai Tataendy disse para a ñandexy'i Ñeã Karai: "o mundo está como está porque não tem mais mãe, só pai".

            O Karai Tupã disse que estava buscando o seu caminho de regresso. E disse: "Fue Jaxy que me llamou, que querian plantar y no tenian tierra". Ou seja, se encontraram no meio do caminho, como no interpasso de uma dança.

            O ñanderu'i Tataendy Ñeery resalta o dizer de Karai Poty: "os detentores e as detentoras da tradição estão perdendo a sua força."

            A ñandexy'i  Yxapy Rendy é categórica ao afirmar que "ao se relegar o feminino se esta gerando um desequilíbrio imenso".

            Mas finalmente é bom lembrar o que nos disse Karai Poty no Mboapy meme ara, antes do seu derradeiro jeroky: "o espírito une as pessoas para dar a oportunidade delas caminharem juntas. Quando isso acontece elas ouvem o Mborai Mborayu, a canção do amor. É um canto ao qual ninguém pode resistir, ouve aonde estiver, pode estar acordado ou dormindo, longe ou perto, não tem como deixar de ouvir". Não tem como deixar de dançar.

            A terceira estrofe do segundo canto do Aywu Rapyta, lembra, pois nem tudo esta perdido, o Mborayu, em concordância com Karai Poty:

 - "E pequenas palavras do futuro

Como coisas que serão grandes

Um dia, tecerão mundos e

Como fonte de todos os cantos

O amor manifestou-se assim".

5.2 OPA'ATY

O aywu, o diálogo-meditação, não tem uma conclusão. O aty termina com o jeroky, a dança e o opa'aty, a saudação de finalização do aty.

            Penso que na verdade, o jeroky é a conclusão do aty. E também do aywu. O aywu é a fala, o verbo, que se faz carne, corpo, no jeroky.

            Dançamos para nos alegrar, para afastar os perigos que nos rondam. Frente aos vários momentos em que fomos ameaçados de extermínio dançamos para saudar a vida, e a permanência do nosso existir, reavivando o movimento cósmico em torno do tata porã.

            No jeroky está presente a rebelião de nossos corpos que permanecem, de nosso canto, de uma fala que não se deixou calar.

            No espaço do opy dança todo o povo a música e o canto de todo o povo, dos nossos avôs e avós de nossos meninos e meninas, a alegria de termos muitas vozes. Vozes que é bom de se recordar em suas afirmações e negações que saudamos neste opa, neste final de aty.

            Após a dança e o cessar da música em torno do tata porã forma-se um grande círculo e todos tocam as mãos espalmadas uns dos outros e elevam as mãos em direção à ywa rupi, o céu, que está além da abóbada do opy, depois retornando as palmas das mãos em direção ao tata porã, o fogo sagrado e as trazendo tocando o kwaray mbyte, ponto situado dois dedos abaixo do umbigo, o ñee porã mbyte, o ponto situado no plexo cardíaco e no jaxy tata mbyte, o ponto situado na raiz do nariz entre os olhos. Todos louvam: "há'ewei Ñamandu". Assim terminou o ara poty aty'guy, a cerimônia Guarani de saudação a entrada de Ara Poty, o tempo das flores, realizado no equinócio de primavera do ano de 2006 no tekowa Ywoty Renda.

 

6 BIBLIOGRAFIA

CLASTRES, Pierre. Le Grand Parler – Mythes et Chants Sacres dês Indiens Guarani. Editions du Seuil. Paris. 1974.

CADOGAN, Leon. Aywu Rapyta. Na série: Boletins da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Universidade de São Paulo. São Paulo. SP. 1953.

JUKUPE. Kaka Wera. Tupã Tenonde. Editora Fundação Peirópolis. São Paulo. SP. 2001.

 



[1] Aty: cerimônia diária Guarani.

[2] Tekowa: espaço onde se pode viver a tradição, reko. Normalmente este espaço é traduzido como  sendo aldeia.

[3] Ñandewa: uma das parcialidades Guarani.

[4] Mborayu: amor, a força que nos une.

[5] Paranã'mimby'guy: trombeta de concha marinha.

[6] Pyte: ato de espargir a fumaça tragada do pety em objetos ou pessoas.

[7] Yy'pety: sumo de tabaco Guarani.

[8] Parika: pó de tabaco Guarani com essências.

[9] Kaayu: chimarrão Guarani

[10] Tendota: a que vai a frente, a que abre caminhos.

[11] Charrua: povo que habitava o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Uma boa parcela dos Charruá vivia o Ñande Reko Guarani.

[12] Ywy'marã'hey: a terra-sem-mal.

[13] Tujá: pessoa com mais de 52 anos, que tem o direito de integrar o conselho dos anciãos.

[14] Kwaarupe: arte marcial guarani que ao ser aprendida pelos afro-descendentes deu origem a capoeira.

[15] Ñamandu Ara guaxu: era de Ñamandu.