terça-feira, 14 de janeiro de 2014

ÑEMONGETA: DIÁLOGO

                                             ÑEMONGETA: DIÁLOGO

          Neste texto respondo algumas perguntas que recebi em meu blog, em entrevistas e palestras. Fiz uma escolha segundo meu próprio critério, por falta de condições de responder conforme as perguntas foram surgindo.
          Por outro lado talvez a partir deste texto possa responder as perguntas que vierem, em forma de diálogo, dando prosseguimento as cinco primeiras que escolhi a priori, por ordem de chegada. Vamos então as perguntas recebidas:



1. Awaju, o que destacaria como mais importante para você, no seu trabalho de pesquisa da cultura guarani?
R: Nesta jornada de mais de duas décadas, o mais importante para mim foi o encontro com Ñamandu, Deus; também a redescoberta de outra face de Kexu Krito, o Ñamandu Miri, Yehetchua Netzari.
Quando me foi pedido na Universidade de São Paulo um depoimento de vida, por ocasião do “Encontro Internacional de História da Religião”, no ano passado (2013), respondi: Dois aspectos de minha vida são mais importantes com relação a todos os outros que me dizem respeito, são: a música, que me acompanha desde sempre, iniciei meu estudo sistemático aos oito anos, porém desde que me lembro de mim estou acompanhado da música; e a  espiritualidade. A espiritualidade teve um aspecto não resolvido até a minha maturidade. Devido a outras influências, minha decisão religiosa foi tardia e casual. Deu-se no ano de 1991 quando morava em Itanhaém, por ocasião da minha pesquisa de mestrado em “Comunicação e Semiótica” na PUC/SP. Nas imediações dessa cidade do litoral paulista há diversas comunidades Guarani. Passei a frequentar essas comunidades e rezar no Opy (casa de reza), devido a facilidade de relacionamento por falar a língua, gostar de tomar Ka’ayu (chimarrão), fumar petym e praticar o Jeroky (dança) assim como de cantar os mborai. Por questões afetivas tomei naquela ocasião a determinação de me dedicar ao resgate e à pesquisa da música e da espiritualidade do meu povo paterno, que é nativo do cone sul da América do Sul, já que minha mãe é de origem Italiana. Hoje já somam 22 anos de dedicação exclusiva ao povo Guarani.

2. O que o Ñande Reko representa para você?
R: O Ñande Reko, a maneira de ser guarani, pauta a minha maneira de viver e, é o meu caminho de realização espiritual.
Por ocasião da saudação de Ara Ymã, equinócio de outono (2011), respondi a uma pergunta semelhante da seguinte maneira: O Ñande Reko é a “postura de vida” do Xondaro, do guerreiro e da Xondaria, da guerreira. É a “maneira de ser” dos Kwaray’i, dos Guarani, ou seja, dos filhos e das filhas da luz. O Ñande Reko também pode ser compreendido como o guata porã, caminho sagrado Guarani, compreendendo por isso um caminho que pede para se ter bons procederes. Diria, também, que o Ñande Reko é o caminho do coração. E que, na verdade, as boas ações, os bons procederes higienizam, lavam o coração.
Quando digo coração estou me referindo ao “Koratã”, ao coração da alma, que por sua vez, tem enorme influência sobre o órgão análogo em nosso corpo físico, na medida de que somos “um”.
A higiene do coração pressupõe boas ações, mas, em um sentido amplo. Então, as boas ações não incluem o encorajamento da traição e da malícia, nem os louvores aos profetas da mídia, aos impostores, covardes e todos os servidores das trevas. As boas ações não incluem a negligência odiosa nem a premeditada dissimulação. As boas ações têm como objetivo o bem comum. Assim, o coração adquire a solenidade (serenidade necessária) semelhante à consonância das esferas. As boas ações, realmente se distinguem como conquistas do bem, não pelas batalhas cruéis, mas pela coordenação com o objetivo. Porém é mais fácil não pensar e aceitar um ligeiro desvio.
O coração sabe onde está o desvio. Muitas infelicidades provêm do excesso de confiança, que é imperdoável onde se guardam tesouros.
É necessário reconhecer a luz como uma substância viva. Normalmente considera-se este ensinamento como o mais infundado. Mas será possível compreender o fluir da energia do coração como algo pertencente ao fosfórico? Ao contrário, o coração sensível leva à renovação da consciência. Não dispensando por isso o estudo dos textos.
O estudo de textos contidos em muitos textos é significativo. Porém, aquele que os estuda não deve tentar assimilar o ensinamento sob o mesmo estado de espírito, porque é dessa maneira que nascem os numerosos pontos de vista. Portanto, seria prudente mencionar em cada texto, pelo menos brevemente, o que foi comunicado antes, para possibilitar uma assimilação sob o mesmo estado de espírito. Os estados de espírito são fontes do nascimento de pontos de vista. O contrário disso faz nascer o preconceito.
Aquele que não vive solenemente não pode compreender o dano do preconceito. Este se desenvolve não em grandes feitos, mas em cada ação diminuta. Assim, o escravo do preconceito desperta já amaldiçoando um sonho que não se adapta às limitações de seu ser. O dia inteiro ele condenará e amaldiçoará, porque não terá as medidas do coração. E ele adormecerá condenando e visitará a esfera correspondente à condenação. A indiferença também faz parte dessa esfera.
Na indiferença criminosa, não se manifestam as reações benévolas, mas na paciência.  A paciência é uma tensão, manifestada conscientemente, e uma oposição às trevas.  É dessa tensão gerada pela oposição às trevas que nascem as reações benévolas. A paciência é a fonte da graça e da leveza, e nela repousa a força do Ñande Reko.

3. Há algumas décadas paralelamente à atuação como pesquisador você vem atuando como pajé, como isso se dá?
R: Meus textos acadêmicos podem elucidar muito sobre esse povo maravilhoso, sobre a sua arte, agricultura e religião. Porém na minha atuação como pajé, como você disse, posso transmitir a vida dessa cultura em diálogo com as culturas do mundo.

4. Qual a relação dos guarani com o cristianismo?
R: O cristianismo faz parte da cultura guarani, de uma maneira mais intensa ou menos intensa conforme a parcialidade. No caso do povo ñadewa’ete, a doutrina de Ñamandu Miri, o Emanu, Ñamandu encarnado, acontece já no primeiro século da era cristã e é trazida por Xume, Yuda Didimus Thomas. O registro dessa doutrina esta no Mborai, canto, “Mborai Porã”, que pertence a tradição oral do povo Ñandewa. Depois temos também o convívio com os Kexuitas, os jesuítas, e contemporaneamente com os evangélicos e espíritas, que também exercem influência sobre os guarani, muitos pesquisadores não querem enxergar essa realidade, mas ela é presente e enriquecedora, seja pelo rechaço ou pela absorção. Não podemos ignorar que os guarani convivem com o estranho em suas terras por mais de meio milênio.

5. Qual a tua relação com o cristianismo?
R: O cristianismo hoje permeia toda religiosidade planetária, seja pela afirmação seja pela negação, toda religiosidade entrou em algum momento em dialogo com ele. A passagem de Yehetchua Netzari marcou um antes e um depois dele. A minha história de vida não é diferente: a família de meu pai é nativa do Paraná. Embora sua prática religiosa não fosse tão presente em termos formais, possuía uma religiosidade permeada pelo cristianismo, cumprindo os ritos básicos do catolicismo como batismo e casamento e a frequência à igreja nos dias de festa, principalmente na festa do Rocio, que é uma santidade de origem indígena, Yxapy é o nome de rocio. Hoje a comunidade caiçara ignora a origem indígena de Rocio e vive apenas o sincretismo.
Meu avô tomava mate por hábito sem ter noção mais da sua origem.  Os avós maternos de meu pai fumavam palheiro ou cachimbo, também sem saber que esses dois elementos fazem parte da cerimônia Guarani do aty, esse fenômeno é comum a muitas famílias nativas do sul do Brasil; o sincretismo católico levou-os a esquecer do sentido de seus hábitos.  Porém coisas fundamentais permaneceram como a vida gregária e comunitária bem como uma sensação de suspeita para com a religiosidade predominante na qual se sentem inseridos, porém, insatisfeitos.
Por outro lado, a família da minha mãe é católica praticante, mas com uma espiritualidade complementada em suas lacunas pelas crendices populares. A avó materna da minha mãe veio de Veneza, mas aqui no Brasil filiou-se à irmandade de São Benedito.
Na minha infância tive formação católica e estudei em um colégio de freiras. Mas, a partir da minha adolescência, comecei um trânsito por muitas influências. Fiz Ioga, pratiquei “Tai tchi tchuan”, meditação Zen. Sempre me aprofundando com afinco e extrema dedicação a minha busca espiritual.
O meu reencontro com a cultura nativa não se deu pela religião e sim pela música, tinha nessa época aproximadamente 34 anos quando me senti em casa novamente.
Integrei em mim a cultura Guarani como relatei na canção “Guayrana”. Com os Guarani aprendi outro cristianismo, se assim posso chamar; quando fiz o meu ykarai, a cerimônia de recebimento de nome Ñandewa, nasci de novo.
Hoje chamo Jesus de “Emanu, Kexu Krito ou Ñamandu mirim”; e o espírito sagrado, o espírito santo de Ñeem Porã; e Deus de Ñamandu; os quatro tronos conforme a sua direção são Tupã, Jakaira, Kwaray e Karai, e assim por diante. E essa não foi apenas uma questão de mudança de nomes, mas de uma mudança de paradigma. Aos quatro evangelhos se acrescentou mais um, o “Mborai porá” de Xume  (Yuda Didymus Thomas), ou seja, no mínimo tive um grande enriquecimento da minha concepção primária da doutrina de Yehetchua Netzari.


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