terça-feira, 10 de julho de 2007

O Xale

                                   O  XALE

 

Quando na véspera do dia de natal do ano de 1636, o povo dourado teve que deixar a província Guarani do Guayra e rumar para os sete povos do Uruguai, as índias retiraram o véu das suas cabeças e cobriram os seus ombros e o das suas crianças com xale de algodão e de lã. Os seus maridos, os seus filhos e os seus pais haviam ficado para trás, lutando com os sanguinários mamelucos que tinham nas mãos armas de fogo, retardando o seu avanço. A desolação era grande.

Nessa véspera de Natal as mulheres guarani choraram caminhando na noite escura rumo ao desconhecido, as araucárias foram ficando para trás e nunca mais elas veriam os grandes pássaros (harpias) sobrevoando as serranias.  Não havia como conter a emoção. Então Ñamandu (Deus) trouxe para elas um prodígio de alegria que surgiu da tristeza: a lágrima de cada mulher tingiu com a cor do seu sentimento o tecido da sua vestimenta que ao amanhecer brilhou ao sol, num espetáculo multicolorido de rara beleza, que foi um consolo para o coração.

Para recordar esse dia, ao branco, ao vermelho, ao azul e ao fio do sol, cada mulher acrescenta a sua cor pessoal na trama do tear da sua vida.

Durante os anos que se seguiram ao caminho das lágrimas, muitas gerações de guarani casaram-se com pessoas de outros povos e alguns perderam totalmente o contacto com o conhecimento tradicional.

Hoje os ensinamentos dos ancestrais começaram a chamar a atenção da população em geral e muitos dos filhos e das filhas da raça dourada às vezes chamados de caboclos, de bugres ou caiçaras voltaram ao caminho sagrado e a cobrir seus ombros com o xale de cinco cores; simbolizando o retorno ao lar de nossos avôs e avós, aos braços da mãe terra, envolvidos pelo seu amor e proteção.

A forma triangular com a ponta para baixo do xale guarani faz referência à feminilidade, a Jaxuka, o eterno princípio dinâmico da onde surge, sempre e em toda parte, toda a criação.

No esmero na confecção do xale a mulher guarani honra a beleza do mundo de Jaxuka e a graça do milagre de Ñamandu, que da tristeza faz brotar a alegria que se renova no amanhecer de cada dia.

 

 

5 comentários:

Marcelo Farias disse...

Ao que parece esta narrativa já provém da cultura guarani cristianizada. Há muitos elementos que indicam isso: o sofrimento sublimador, "o" Deus (e não os deuses), o milagre reparador, enfim...

CassYes Hertha Ethain...esse é o nome pra mim! disse...

Lindo texto, mas por que na vespera do Natal?

awajupoty disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
awajupoty disse...

Marcelo, agradecido pela visita.
É provável que sim, que essa narrativa já tenha uma forte influência do cristianismo (mensagem de Jesus vinda à partir do sincretismo europeu). Há uma outra vertente de influência da mensagem de Jesus que não é eurocêntrica, que é mitica e refere-se à Xume (Tomé, o Didimos Thomas). A maneira como toda essa influência é trabalhada e assimilada e conotada em outra instância é que é o interessante de ser apreciado na religiosidade Guarani. A singeleza deste texto me encanta, talvez por me parecer diferente,pois não tenho tanta intimedade com a literatura cristã.

awajupoty disse...

CassYess, agradecido pela visita e por ter gostado do texto. Não sei porque na narrativa há essa datação de ter sido nas vésperas do Natal, talvez porque tenha sido assim. O natal de certa forma, no que diz respeito ao papai noel, a troca de presentes e ao carater festivo é uma data assimilada pelos Guarani. Com relação ao Jesus, ao seu nascimento,sabe-se que é uma convenção e que resulta de um sincretismo com divindades europeias.